Meus sete níveis
da prosa literária

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Certo dia, pus-me a pensar na questão “o que é literatura?”. A palavra evoca certa erudição à primeira vista e há variadas definições para ela. Pessoalmente, diria à minha filha de seis anos que literatura é o mesmo que a arte da escrita. Não importa qual gênero textual. Por exemplo, é consabida a história dos famosos relatórios administrativos de um certo prefeito de uma cidadezinha do interior das Alagoas: um tal de Graciliano Ramos.

O alcaide teve o talento para a escrita descoberto por meio daqueles papéis burocráticos que relatavam a situação da administração do município. Ocorreu que a veia do artista já aparecia ali, em frases surpreendentemente interessantes. Numa palavra, aquilo tinha literatura, pois tinha arte. Chegado tal material ao conhecimento do sr. Augusto Frederico Schmidt — poeta e editor no Rio de Janeiro — fez-se o contato inicial e o ex-prefeito Graciliano foi alçado àquela que seria sua verdadeira vocação: escritor.

Quem dera tivéssemos mais Gracilianos e mais Schmidts.

Mas voltando ao assunto. Tudo que se publica é mesmo literatura, ao menos um pouquinho? Bem, críticos literários bocejariam nesse instante, pois sabem que tal pergunta já foi respondida de há muito. Minha intenção é mais modesta. Não sou crítico literário. Apenas rabisco um mapinha num guardanapo para a amiga e o amigo se encontrarem, de um jeito simples. Lúdico, até.

De modo que proponho um exercício prático. Imagine que você vai a um hipermercado e ali, antes da seção de pneus, esbarre num estandezinho de livros dispostos com desmazelo típico: vê uma autoajuda ali, o panfleto feminista acolá; um manifesto identitário e um Machado para constar; a biografia daquele ex-BBB; outro manifesto feminista e atrás dele, um livro de dieta. E o Torto Arado.

O que há de literatura ali?

“Machado, claro”, dirá o espertinho, sem titubear. Fácil demais. “Ah, Torto Arado!”, dirá a doce jovem que ama ler e que coleciona marca-páginas de crochê e assiste a booktubers. Hum, Torto Arado… ouço falar e uso de boa-fé. Mas enquanto a hipótese de visitar o sr. Itamar não me ocorre, seus leitores poderão saber se o bom baiano faz mesmo literatura, em qual nível; isto se minha classificação abaixo fizer algum sentido e conversar com a verdade.

Mas antes: não dogmatize, caridoso e eventual leitor; credo-em-cruz, Deus me livre e guarde. Sou leitor como tu, não autoridade no assunto. Ciente disso, posso inclusive abandonar esta classificação se me chegar uma melhor. Haverá melhores, seguramente. Dou-me por satisfeito se soar parecido aos mestres, se resvalar um tiquinho nos grandes. Embora deva dizer que jamais vi classificação parecida; logo, qualquer semelhança será mera coincidência.

Outra coisa importante (não vá embora!): a classificação serve apenas para prosa de ficção. Não entendo patavina de poema, de teoria poética. Este gênero está fora da consideração abaixo, exceto onde anotado. Também não trato de não-ficção (exceto no último nível, por pura necessidade). A arte da escrita está presente na prosa não-ficcional, evidentemente. Mas quanto a esta, limito-me a admirar os bons textos e rejeitar os ruins. Não me atrevo a classificar.

Sem mais delongas, enxergo a prosa em sete níveis por ordem de importância, a saber: Literatura de Tradição, Altíssima Literatura, Alta Literatura, Literatura Intermediária, Baixa Literatura, Subliteratura, Desliteratura.

Nível 1: Literatura de Tradição

Nela se baseiam as grandes religiões. Ela inicia civilizações, cria e mantém as grandes tradições; são a base da linguagem, mãe de idiomas. São os livros sagrados, as obras eternas, únicas, sem paralelo; mesmo o não-leitor tem contato ao menos indireto com elas, pois estão incorporadas ao espírito dos povos e de nações inteiras. É o nível mais alto da literatura, quase transcendente, pois separa o humano das demais criaturas, inventa sua Língua, estabelece seu espírito e dá forma a seu pensamento. Dela derivaram todas as demais expressões literárias, todas as manifestações culturais e tradições dos povos ao longo da História. Breves exemplos: os livros sagrados das grandes religiões; as peças gregas; os épicos; a Ilíada e a Odisséia; a Eneida; a Divina Comédia¹.

Nível 2: Altíssima Literatura

Esta é a categoria das obras mais importantes da prosa enquanto leitura. Não são apenas obras clássicas, mas referências máximas que modelam gêneros, justificam a existência destas e elevam a outro nível a arte literária. São matrizes quando se trata de ficção. Por exemplo: Dom Quixote, Moby Dick, Guerra e Paz, Os Irmãos Karamázov, o Fausto de Goethe, as peças de Shakespeare².

Nível 3: Alta Literatura

Esta é por excelência a seção dos maiores clássicos da literatura universal (e aqui adentra um brasileiro), especialmente os grandes romances dos séculos XIX e XX (mas não só): Madame Bovary, Crime e Castigo, Anna Karenina, Razão e Sensibilidade, Um Conto de Duas Cidades, Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Vermelho e o Negro etc. etc. etc. Impossível listar os mais importantes. O conjunto consta nos cânones.

Nível 4: Literatura Intermediária

Clássicas ou não, as obras intermediárias carregam adiante a tocha da literatura. Nada têm de medíocre — muito pelo contrário. São grandes livros: uns clássicos e outros não necessariamente, segundo a crítica. Podem figurar em listas importantes e não raro serem “clássicos pessoais”, a depender do gosto de quem os lê. De toda forma, são prosas feitas com tal arte que ultrapassa o mero prazer em ler. Dialogam com a existência humana e seus dramas. São obras importantes, pois nenhum leitor que se preze pode prescindir delas ou menosprezá-las. Alguns exemplos (dentre centenas): O Processo Maurizius, Servidão Humana, Mrs. Dalloway, A Montanha Mágica, Lolita, O Som e a Fúria. A lista é imensa, imensa…³

Nível 5: Baixa Literatura

Não se assuste com o “baixa”. Falamos ainda da arte e estamos protegidos pelas cercas do bom gosto. Ainda nos abrigamos na casa da literatura, mas fomos ao quintal para espairecer um pouco, tomar ar fresco. Por que este “baixa”? Algo pejorativo? Não, de maneira alguma. Pelo seguinte: embora ainda literatura, aqui estão obras mais comerciais, geralmente recentes do ponto de vista histórico, mas de qualidade indiscutível. São livros de ótimos e de bons autores, que dialogam com os grandes textos e grandes autores. Caracterizam a baixa literatura:

  1. a intenção de ser popular, porém com qualidade;
  2. transportar e preparar o leitor para literaturas mais elevadas (dos níveis acima, portanto), numa espiral ascendente. Aqui está sua maior atribuição.

Portanto, digamos que a baixa literatura cumpre uma função nobre e importante: apresentar o mundo dos bons livros ao leitor iniciante e ensiná-lo o gosto por ler. Não que seja coisa apenas de novatos, de maneira alguma. Pode ser que os livros desses autores tornem-se clássicos algum dia, embora seus autores não sejam clássicos no todo; o que não os afasta da apreciação mais que merecida. Exemplos (por autor): Morris West, Somerset Maugham (cujo Servidão Humana citado acima considera-se clássico), Truman Capote (A Sangue Frio, outro clássico), Georges Simenon, Agatha Christie, Isaac Bashevis Singer, Mario Vargas Llosa, Milan Kundera… entre centenas e centenas de outros.

Nível 6: Subliteratura

Aqui a coisa muda sensivelmente: fechamos a cara. Há um corte abrupto, uma mudança de cenário. Saímos da arte e entramos na caricatura da arte, logo, no engodo. Como o nome indica, a subliteratura está abaixo do fazer literário. Há uma subliteratura de iniciantes ou amadores inábeis, facilmente detectável e tolerável por motivos óbvios: o que não significa que todo estreante faça subliteratura, longe disso. Todo grande escritor começou um dia. A diferença se nota no teor. Quem fizer algo relevante irá adiante, cedo ou tarde.

Mas grassa aqui outro tipo de escrita, algo intencional. Seus autores escrevem por fórmulas fáceis de composição, tramam enredos esquemáticos, formulinhas que “funcionam”: começo, meio, fim, pá e pum. Não têm cuidado com chavões ou lugares comuns, pelo contrário.

A subliteratura profissional busca vender muito e distrair. Não busca a reflexão. Não dialoga com a existência humana, dá-se apenas a melodramas rasos. Abusam da linguagem coloquial. São inverossímeis, e de umas situações tão escancaradamente vazias que por vezes são percebidos pelo próprio consumidor. Seus personagens são rasos, com nomes estranhos. As falas copiam os piores filmes.

Diferente da baixa literatura (nível 5), a subliteratura não quer leitores mas clientes. É o fast-food dos livros: enganam a “fome de ler” mas não nutrem. É o lugar dos best-sellers da hora (americanos em especial; geralmente de autores-franquias, com o nome gigantesco e padronizado nas capas): Tom Clancy, Jojo Moyes, John Green, Danielle Steel. A lista não acaba. Mas há como detectar: o nome do autor é maior que o título da obra? Eles tem um caminhão de títulos e lançam um novo a cada ano? Hum…

De resto, a liberdade. Um Big Mac de vez em quando não mata ninguém: consuma, se quiser. O dinheiro é seu. O tempo, também. A mente, etc.

Nível 7: Desliteratura

O pântano. O horror. Um atentado à inteligência popular. Sim, é possível baixar um pouco mais. Se a subliteratura está abaixo da arte e afasta o leitor-consumidor dos melhores textos, a desliteratura dedica-se a destruir qualquer arzinho de gosto literário. Picaretagem em forma de livro, feita de espertos para burros. Pega-trouxas. Aqui pousam os trapaceiros, os oportunistas, os caça-níqueis; apelativos de toda sorte. Puro desperdício de eucalipto, são todos escritos por ghostwriters de quarta categoria, sempre apressados, mal pagos, com muita preguiça ou tudo junto. Quando autorais (algo quase impossível), serão escritos por gente que se arvorou a escrever sabe Deus porquê, já que não gostam de ler, nunca leem nada na vida, sequer uma nota de jornal. Fácil comprovar: a ofensa ao idioma grita a cada linha.

Nesse ensopado cabe tudo: “biografia” de ex-BBB, confissões da youtuber com uma Espanha de seguidores; aquela capa que grita “Seja Foda” ou “Foda-se-Alguma-Coisa”: sabe que tipo de leitor se impressiona com uma palavra chocante na capa, a ponto de comprar o livro? Zero. Nenhum. Só o não-leitor e futuro nunca-mais-leitor.

Esqueça qualidade. O propósito da desliteratura é vender pelo choque, embarcar no timing e faturar. Quem a consome, suicida o próprio gosto pela leitura de imediato e incrementa a burrice — isso se ler mesmo. A esses, seria melhor assistir séries no streaming, ver rede social no smartphone. Poupar as árvores.

E a literatura brasileira?

Machado de Assis é nosso escritor universal. Diria universal aquele cuja obra o mundo devia conhecer, para seu próprio benefício. Nossos demais escritores clássicos, porém, não os vejo como universais. Suas obras habitariam da alta à média literatura (Níveis 3 e 4). Quanto aos contemporâneos, creio que fiquem pela baixa literatura (Nível 5): conduzem seus leitores à média e alta literatura. E fazem arte, em geral.

Então, pensei nos portugueses que nos deram o idioma, afinal. De cara, confesso minha ignorância além do básico que nos chega ao Brasil (para nosso azar!). Destes, universais indiscutíveis são Camões e Pessoa, eternos. Mas são poetas, e não trato aqui de poesia. Na prosa, Eça e Camilo estariam no Nível 3, Alta Literatura. Universais, também. Saramago foi Nobel de Literatura, mas temo classificá-lo: julguem seus leitores. Lobo Antunes estaria no Nível 4. José Luís Peixoto, Nível 5. Certamente cometo injustiças, sem intenção. Demais lusófonos, há que conhecê-los. Chegarei a eles conforme as indicações me constrangerem a ponto de não suportar o vexame de não lê-los.

Por fim

Toda literatura de todos os gêneros literários nos torna melhores na alma — em diferentes graus. Bons livros sempre levam a melhores livros. Livros ruins levam-nos para longe de todo e qualquer livro. De modo que é preciso educação literária: quando menos, alguma informação que ajude na tarefa. Tentei isso neste breve artigo, humildemente. Espero que com proveito para quem eventualmente o acessar e ler.


¹Nota – nível 1: Embora se apresentem em versos, portanto poéticos, é preciso considerar que a escrita antiga lançava mão da versificação como forma de passar da oralidade à textualidade. Não se trata de poema como conhecemos hoje, isto é, de gênero literário em separado. Ademais, a escrita em verso antecede a prosa tal como a conhecemos, por isso, Tradição.

²Nota – nível 2: Estas duas últimas (Shakespeare e Goethe), embora em verso, foram escritas para o teatro. Goethe também escreveu em prosa. Quanto à versificação, de certa forma, aplica-se o mesmo caso da nota anterior.

³Nota – nível 4: Talvez haja dissenso aqui; certamente haverá. Por isso, reitero: sem dogmas. São apenas percepções pessoais, passíveis de equívoco. De toda forma, mesmo quando não clássicos absolutos, todas as obras são de muito alto nível aqui. A diferença reside justamente na ausência do “cânone” consensual entre a crítica, esta que pode variar muito, pois não se trata de ciência exata.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 29/01/2022



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