A Eterna Fluidez

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Diário Inconstante, 19.10.2020

Há tempos não vinha à Barra Funda, por motivos vários. O que tem de especial na Barra Funda? Nada em particular. Para mim, porém, aquelas ruas guardam memórias de quando trabalhava aqui, por anos, em duas fases importantes da minha vida. Mas a pandemia me afastou desse enclave que hoje serve apenas como passagem apressada entre um ponto A e um ponto B da cidade, para a maior parte dos paulistanos.

Penso que o bairro guarda um misto de aristocracia perdida no tempo, substituída por uma decadência pacata. A Barra Funda é um bairro com variados cheiros, não necessariamente agradáveis, embora marcantes. Agora, o vazio de gente forçado pelo novo coronavírus dá certo ar de terra de ninguém ao lugar. Tudo parece um enorme canteiro de obras abandonado, cercado de tapumes sujos e pichados. Vê-se um operário ali, outro ambulante acolá. Nem as figuras sofridas e miseráveis de costume vêem-se mais por aqui.

No caminho, no vagão de um vazio metrô, noto a simples presença de uma única moça em meio a marmanjos aleatórios a disparar olhares, despindo-a sob mil pensamentos frívolos. “O melhor a fazer é não tentar adivinhá-los”, diria a ela, se pudesse. Empunho um Coração das Trevas de Conrad e sinto o constrangimento da moça como se fosse comigo. O incômodo dela era notório e justificado. Com efeito, é difícil ser mulher, nas mínimas coisas. Quanto à moça do vagão, devo dizer, reunia mesmo atributos dos quais a audiência circundante, conquanto os admirasse, certamente não era mui digna deles.

Bem, chega a estação e a moça desembarca; marmanjos, idem. E eu mal sabia que o melhor a fazer era me abster de atirar a primeira pedra e não lançar-me a julgamentos apressados.

Vou ao Banco do Brasil na Marquês de São Vicente, eis o meu destino no bairro. Preciso retirar um novo cartão que se encontra na agência. Antes, no trajeto, uma mulher entrega-me um santinho. É época de eleição para prefeito. Algo curioso ocorre comigo: os detalhes são despiciendos, mas a visão daquela mulher, depois de tempos de quarentena, desperta-me certa excitação bem conhecida, porém ausente há tempos em espaços abertos. Estranho. Chego a uma conclusão: a de que ser casado implica em possuir a própria mulher como se ela fosse todas as outras. Todas as fêmeas desejáveis do mundo, numa só. Daí que — estranha dialética — para atrair-se pela sua, é preciso antes atrair-se por outras mulheres. Depois, vingar-se à noite das visões e sensações acumuladas do dia; expulsar e expurgar — e tombar, redimido.

Pobres mulheres, a agraciar-nos e perturbar-nos com seu Eterno Feminino! E miseráveis de nós, homens, por não saber lidar com isso. Culpa de quem? Não sei. Culpemos a natureza: há desvios de ordens biológica e instintiva que ideologia alguma, por mais bem-intencionada que seja, consegue dirimir. Freud explica; Darwin também. Apenas a religião que não: somente condena e cerceia, cerceia e condena, usando o medo da danação para conter a fúria do pecado.

A religião ensina que o homem é uma tríade: corpo, alma e espírito. Grande coisa. A mulher é bem mais que isso. Multidimensional, plasmática, polivalente, inefável. Ela não necessita racionalizações, intelecções de sábio nenhum. A mulher é substância que a explicação não alcança. O mesmo Freud morreu sem decifrá-las. São puro mistério, elas: mandam sujeitando-se, dominam adaptando-se, renovam-se ao sangrar. A mulher é um ser inteiramente esotérico.

Mas divago. E o banco?

Sim, o banco. Na agência, em obras e absolutamente vazia para uma segunda-feira, sou atendido com dedicação por Alberto. Conversa comigo, sem pressa. Lá pelas tantas, oferece-me uns “produtos bancários”, visivelmente embaraçado. Funcionário público com metas a bater, que coisa estranha. Não combina. Ele não sabe que eu sei bem o que ocorre. Talvez a constante ameaça de privatização Guedes-Bolsonariana paire no ar e o gerente já tenha alertado ao pessoal que Brasília ameaça a estabilidade empregatícia, aquela mesma que o senhor grisalho de meia-idade tanto batalhou para conquistar após diversos concursos. A ausência total de clientes por causa da pandemia deu ao servidor uma rara oportunidade de servir bem ao público. Então, fui bem atendido. Até os vigias me foram gentis.

Burocracia resolvida, volto para casa-escritório — outra modalidade que a pandemia 2020 impõe. Na estação, passa outra mulher. E de novo, o exame anatômico involuntário do macho (desculpem, desculpem): geometria, montanha-russa, sinuosidades; reentrâncias movimentam-se; virabrequim hipnótico. Ocorre-me a palavra: languidez. Excitação novamente. E de novo, a conclusão obtida na visão da mulher anterior: que ser casado implica em… e coisa e tal.

Pois eis a mulher, senhores: cíclica, simbólica, permanente e mágica. Eterno Feminino que as palavras não alcançam, filosofias não definem, psicologias não analisam. A mulher é esfinge, tenha ou não segredos, ó Oscar Wilde; pouco importa. A mulher, ela simplesmente vive e flui, flui e flui. Eis todo o segredo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Marte
e Vênus

O MUNDO foi de Marte, hoje é de Vênus. Quando e se a era venusiana declinar, o mundo voltará novamente ao estado marcial, por força da contingência.

Eis como tal coisa sucede.

Marte e Vênus alternam-se ao longo das eras, em períodos cíclicos. Marte, por meio das guerras e da força bruta — à custa de muito sangue, músculos, cérebros e vidas inteiras — cria e estabelece a “normalidade” na sociedade humana. O deus vence o mundo hostil e o conquista. Funda (ou refunda) civilizações, nações desenvolvem-se; e, paulatinamente, aquela brutalidade inicial torna-se desnecessária, cedendo lugar à paz, à beleza e à graça. A existência como um todo suaviza-se: inicia a era de Vênus.

Então, a feliz estabilidade das sociedades perpassa os séculos, e as gerações que se sucedem, uma após outra, esquecem-se do árduo trabalho empreendido por Marte para se alcançar este estado de felicidade, o qual, ao contrário do que aparenta, não é perene. A dominante Vênus, acomodada e ingrata, menospreza a origem de sua força e de sua vitalidade e, desdenhosa, entrega tudo ao inimigo, sem o saber.

Quando Vênus domina ostensivamente a existência sem a contraparte que a equilibra, ela tece e molda os pensamentos humanos de maneira oblíqua e temerária. Princípios e valores até então intocáveis invertem-se, insurgem-se contra Marte, hostilizando-o. Dádivas penosamente adquiridas, não por ela, são descartadas como se procedessem de infinitas fontes; dádivas às quais a deusa não fora capaz de criar, tampouco de garantir, apenas de usufruir. Se Vênus reinar só e, inconseqüente, não retroagir de nenhuma maneira, o Bem finalmente se perderá.

Marte será convocado à ação novamente. Ou age depressa ou todos perecem: os homens, as mulheres, toda a civilização humana. O ciclo épico recomeça, e a humanidade torna-se novamente a argamassa que reconstrói o mundo: o mundo marcial é bruto, indômito, implacável. Sem Vênus, retorna a barbárie, os cadáveres empilhados, o sangue que tingirá as bandeiras e as flâmulas dos povos, até que os mais fortes prevaleçam.

Do equilíbrio de forças entre Marte e Vênus advém o equilíbrio da vida humana na Terra. Deuses sucedem-se por eras, e podem fazê-lo, imortais que são; nós, porém, sem a harmonia das forças divinais, pereceremos todos.

Portanto, que Vênus e Marte estejam permanentemente em paz. Para o Bem de todos, mulheres e homens, mortais que somos.

A vingança dos
barbudos gourmet

BARBUDOS, barbudos por todo lado. Para onde quer que se olhe, há um ser humano do (cambaleante) sexo masculino portando uma questionabilíssima barba. Está na moda. Diante disso, um amigo blasé me aconselharia a encarar o fenômeno como mero produto da moda, portanto algo passageiro. Sim, a moda é assim, eu sei. Essa onda passará também, cedo ou tarde.

Observo que há uma recente indústria em torno das barbas gourmet, como foi na década passada a onda das pet-shops. Ser barbudo não se trata mais de desleixo, de deixar os pêlos tomarem a cara e não fazer nada a respeito, muito pelo contrário. Proliferam-se os salões para barbudos com hidratantes para barbudos e apetrechos para barbudos. E visual apropriado para barbudos: muito couro curtido, ferragens em ouro velho, tecidos estonados de algodão cru, camisas flaneladas. Uma coisa meio lenhador urbano importada dos EUA. Rapazes saudosos de uma tradição nunca vivida mas aprendida na internet cultivam suas barbas por aí, e as tratam como se tivessem vida própria: levam-na para passear, é o novo pet. “E daí, há algo de errado nisso?” Não, nadinha. Mas não significa que esteja tudo muito certo.

A atual síndrome barbuda é uma espécie de vingança tácita do homem, este ser atualmente perdido na civilização. Provavelmente seja uma das últimas coisas que lhe restaram do ser macho pra valer, do algo que só homem pode fazer: porque sabemos o quanto no mundo atual é proibido haver alguma coisa só de homem, sem parecer viadagem ou machismo. Então, as barbas gourmet surgem como um ato de resistência. É uma resposta urgente à feminilização compulsória: para tornar o mundo mais amigável às mulheres (ué, não era?) todos devem ser um pouco mulher, deixar-se feminilizar, de alguma forma.

Esqueçam a propaganda ideológica: quem vive oprimido, de verdade, é o homem. Como aliás sempre foi. Quem morre mais? E a figura masculina apanha dia e noite porque ainda, repito, ainda não se tornou propriedade estatal, como a feminina. A mulher, concorde ou não, já é propriedade do consórcio Esquerdismo-ONU-ONGs-Universidades-Estado-Mídia (doravante chamado apenas de consórcio). Só que a pobrezinha não percebeu, a coisa toda foi muito sutil. Esse tal consórcio, mediante pressão exercida por instituições tentaculares e constante martelamento midiático, apoderou-se das mulheres e visa apartá-las dos homens, bani-las da presença masculina, isso de um lado; por outro lado, tenta desconstruir, desvirilizar o macho, pouco a pouco, a fim de apoderar-se dele também e instrumentalizá-lo algum dia.

O homem, porém, resiste como pode. Mas vive muito mal, nos dias que correm. É cachorro sem dono, pode chutar que ninguém liga. É um lutador escorraçado no ringue, com a cara repleta de hematomas, que se segura nas cordas recusando-se a cair. Agora que seria a hora ideal para finalmente desfrutar de tudo quanto seus antepassados deram sangue, músculos e cérebros para conquistar, ele vê as mulheres sorrateiramente pegarem tudo para elas. Ou melhor: vê o consórcio supracitado a desapropriá-los, desautorizá-los, e entregarem tudo às mulheres, ainda que elas nem peçam ou façam questão. É uma operação mefistofélica.

Elas no entanto não reclamam, entorpecidas pela lisonja fácil da ideologia — sempre de esquerda, declaradamente ou não — além de, por natureza, adorar ser cortejadas. Por séculos, as mulheres viram os homens matar e morrer nas guerras, inventar a civilização, descobrir a luz elétrica e seus confortos, desenvolver ciência e tecnologia, presenteá-las com a indústria da estética e da cosmética: depois que tudo ficou absolutamente simples, organizado, acessível, quando finalmente braços fortes deixaram de ser necessários — uma vez que para tudo basta apertar botões ou deslizar dedinhos numa tela — disseram que elas são as novas donas do mundo, elas gostaram da idéia e ai de quem der um pio contra.

Claro, diriam, “elas sempre dominaram o mundo, tolinho: a mão que balança o berço é a mão que domina o mundo”. Sim, é verdade, mas havia um equilíbrio, uma mínima cooperação mútua, não? Meu ponto é que, atualmente, o consórcio entra na parada, sequestra as mulheres e usam-nas de porrete contra os homens. É como se, na cama do casal, entre o homem e a mulher deitasse um rinoceronte. O rinoceronte é o consórcio.

Mas voltemos aos barbudos. A barba então foi o que sobrou de exclusivamente masculino para os caras. Embora, em avançado estado de desvirilização, eles se meteram em certas feminices, como cozinhar, também. De avental e tudo. Vide a concomitante onda dos chefs: então, você vê lenhadores que preferem cozinhar ao invés de rachar lenha.

Contudo, meditando no assunto, eis que algo me ocorre: a barba, ainda que gourmet, pode ser um contra-ataque masculino para recuperar o território perdido. É possível. De maneira que o barbudo-gourmetizado moderno, mesmo frequentando salões de beleza “pra macho” e mesmo cozinhando de avental, entre outras feminices, ainda pode nos dar uma pontinha de esperança.

Por que esperança? Porque a continuar assim, quem sabe se elas, enciumadas, retornem aos salões de beleza, redescobrindo o prazer de uma boa fofoca. Ou, incomodadas com a concorrência masculina, voltem a cozinhar, felizes e cantarolando. Ou larguem a mão “dessa porcaria de futebol”, atirando na cara dos homens o que diziam outrora, “são vinte e dois bobos correndo atrás duma bola”.

Pois continuem, rapazes de barba gourmet hidratada, continuem. Eu, eterno imberbe, pobre vítima das maciças propagandas da Gillette nos anos 80 e 90, só posso desejar-lhes sorte: em breve, poderemos ter nossas mulheres de volta. Te cuida, infame consórcio! Te cuida, ideologia picareta!