os senhores respeitáveis

os senhores respeitáveis:
se reúnem novamente
os senhores respeitáveis.

deliberam, entreacordam,
engendram leis detestáveis
os senhores respeitáveis.

urdem tramas nos carpetes,
contra campos e cidades
os senhores respeitáveis.

jamais cuidam realmente
da gente as necessidades
os senhores respeitáveis.

dentro em casa, nobres damas
gestam a continuidade
dos senhores respeitáveis.

longe, esperam as amantes
que saciam apetites
dos senhores respeitáveis.

moral falsa: capa útil,
camuflagem das maldades
dos senhores respeitáveis.

desequívoco

não tenho lado, apenas percebo
não porto bandeiras, trabalho a intuição:
não vão atar-me a interesses sujos inconfessos
nem a perversas sensatezes cínicas
de mil e uma seriedades calhordas.

desistam de mim, senhores. desistam.
se me puxarem, não irei
se me desprezarem, os desprezei antes:
assim, empatamos;
mas eu triunfei.

o que quero? bem benigno e vero, em tudo e a todos
não só a conveniência vil e cega dos demônios.

eu vi: quis-se dinheiro de início, e isso foi tudo
hoje querem mais: prestígio, pétrea razão,
lavar cérebros suscetíveis.
ah, não o meu; o meu não terão.

se tenho agora lado? errado: apenas percebo
e se me puxam, não vou. desistam.

o que farei? cá estarei, só, se necessário for,
sem levar-me pelas ventanias da tolice (não tidas como tal):
eis meu singelo e atual heroísmo.

bem benigno quero: a mim, ao outro, em tudo.
de uma coisa sei: rejeito ao bem que no fundo é mal, porém.

Natal?

Fui assaltado no Natal. Na antevéspera de Natal.
De modo que, minha resposta chata à pergunta chata da tia chata,
“Sabes o sentido do Natal?”
Pelo menos o desse ano posso dizer:
“Sei. Assalto.”

Não, não gosto de Natal, desse período. Jamais gostei.
Natal é coisa pra americano brincar de neve na tevê.
Aqui, nem neve a gente tem:
faz um calor dos diabos no hemisfério.

Natal é uma coisa que o Brasil aprende na tevê,
pra comprar e gastar com Coca-Cola.
Isso: Natal é invenção da Coca-Cola.

Natal é dar e ganhar presente errado;
ter gratidão por ganhar aquilo que detesta,
de quem te presenteia como quem zomba de ti.

Todos comem no Natal: bebem, incham, vomitam no Natal.
Peru com Aji-no-moto, glutamato monossódico que mata.
Frango peitudo-gigante, puro hormônio-antibiótico vendido bem caro.
(Depois a sobra vira salsicha baratinha.)

Mas fui assaltado no Natal.
Cadê o espírito do Natal?
Esse é o espírito do Natal.

Tu, que tens a fé popular da vovó boazinha
Tu, que pensa em renas no país das antas
Tens-me agora por blasfemo, bem sei.
Seu tolo. Seu tolinho:
Pois nem Jesus, nem o menino Jesus do presépio jamais gostou do Natal.
“Nada tenho com isso”, diria São Nicolau.

Sabes quem gosta do Natal?
O ladrão que me assaltou.
Ele, como tu, comeu peru com glutamato,
ganhou presente detestável,
viu rena e neve na tevê,
bebeu Coca-Cola com o fruto do roubo
e me acharia blasfemo (ladrão odeia blasfêmia)
se lesse — se entendesse — o que escrevo aqui.

Sim, o ladrão pensa igual a ti e a todo mundo.
O ladrão só queria um Natal bom:
Por isso mesmo assaltou.

A revanche

As certezas todas e meus arrimos
A um só tempo mostraram-se inúteis:
À ruptura dos tempos, calei, amargurado.

Ao derredor vi alegres niilistas,
Férteis e prósperos a vicejar,
E a negar minha expectativa
Dum inevitável e exemplar castigo.

Justiça divina? Justiça minha:
A duras penas descobri.
Mas não me arrependi. Fechei-me
Em sérias convicções a eles obsoletas,
quiçá risíveis, quando as expunha.

Depois, encasulei-me: tranquei da alma
As portas e janelas, cerrei as cortinas.
Pouco se me dava, fosse noite ou dia
Ou data festiva: queria de volta
O tempo aprazível, a beleza sã,
Seguro esteio que neguei ser ilusão.

Então o jogo contra mim virou-se
As chances todas me foram contrárias.
Decidi: faria eu mesmo um jogo, só meu:
Pregaria no deserto, a pedras, plantas
E a quem mais quisesse ouvir-me.

Vã operação? Talvez, havia a hipótese.
Se me cressem todavia, ah, se um par de almas ouvisse!
Lançaria miúdas sementes e, no entanto, perigosas.

Quanto àqueles, pagariam o menosprezo
De repisarem, destruírem tudo que eu amava.
Decerto, caro pagariam: oportunamente.

Pois era aquela a minha vez:
Naquele instante o vendaval se fez.

Sacrifício

Exigiram-me tanto, e por tantos anos…
Minha sina foi ser preterido, recusado

Encetei um esforço sobrehumano:
Alcei-me qual Ícaro à altura das demandas
E, de fato, voei
— a uma altitude julgada insuficiente, porém.

Equipei-me, treinei, lancei mão dos recursos
que a última tecnologia disporia:
Duro lance que levou nervos, tempo e energia:
— minha própria vida.

Não obstante, consegui! Superei e bem alto voei!
Aqueles, contudo, eram outros requisitantes
Cuja opinião compartilhada foi a de que voadores
Era coisa já obsoleta e ultrapassada.

Destarte, toda minha vaidade alada
Se esvaiu num átimo, ante a cíclica negação
De iníquos que se alternam, o tempo todo,
E detém nas mãos o poder de decidir.

Alma
gêmea

Quem dera os sentidos de meu corpo
Suplantassem a vil matéria
E adentrassem a malha etérea
De tua alma, além da forma:

Saber na fonte intuições
Inefáveis, tua própria metafísica
Que mesmo a razão pura inalcança.

Quisera eu deslizar, feito plasma,
Na compleição pulsante e viva
Onde o pensar não brotou, não nasceu:
Pré-verbal, embrionário, substancial.

Quem sabe se lá, eu penetrado,
Visse, com olho vão e limitado,
O amor nascente em teu espírito nuclear

E no lago onde repousam tuas vivas emoções
Nítido, contemplasse, refletido à superfície
A inequívoca presença do meu eu.

volta

desista, ele disse:
desista de poemas.

crédulo e dócil
à autoridade da mera voz grave
e unanimemente respeitada
acreditei
e parei.

.   .   .

esterilidade e silêncio.

.   .   .

tudo graças a ele,
autoridade da mera voz grave
cujo nome figurava no topo da hierarquia.

obedeci: não sei quê me deu.
fiz-me nulo.
calei.
contudo, não recebi agradecimento de nenhuma espécie
pela deferência à ordem estabelecida.

depois, eu vi.
não sei como, vi:
entendi que parar não devia:
retomei.

a mera voz grave, já sem autoridade, posto que ignorada
é despreocupadamente desobedecida,
a despeito do perigo iminente nunca concretizado,
e chutada prum canto qualquer, a hierarquia.

faço e farei poemas.
cala a voz má: não sei quê lhe deu.
já quanto a mim
constante e suave
renasce-me a força.

pauliceia gris

— dezesseis graus lá fora:

céu nublado em São Paulo;
adoro nublado em São Paulo.

cinza-morte do asfalto, rejeito;
desprezo o bege-tédio das casas.

mas, pauliceia, teu celeste gris,
mescla pastel, carvão e giz, amo:

teu fundo neutro perfeito acentua
       as cores das moças
       o verdor das árvores
       multicor dos jardins.

noto monumentos!
por breve momento,
há beleza em São Paulo.

esqueço de te odiar,
se observo, atento
teu céu cinzento, São Paulo
e o bonito que ele faz mostrar.