quase

corro, taco roupa, paro à margem:
fico, não pulo.

o lago imóvel me caçoa.
cato as peças, retroajo:
enxabido, humilhado.

faltou pouco, sempre falta:
casmurro, logo empaco.

vida besta, a vida-semi!
nunca tudo, nunca lá!
sempre prestes:
inconcluso, só empate.

e o lago riu de mim.
“ia pular, ah, devia!”
colo aqui, não reajo.

eu, covarde?
meio a meio.
tudo em parte:
sou um quase.

Estupefato

Fico estupefato
com esse homem tão lógico, de frieza geométrica
que traça planos na mesa enquanto o mundo arde

Fico estupefato
com o tipo que ostenta vitória material
e conseguiu melhorar na pior maneira de viver

Fico estupefato
com a vida-máquina pronta, artificialmente programada
enquanto ninguém se prepara para envelhecer

Fico estupefato
com a mulher que devora o presente como se fosse tudo
como se mil contatos lhe fossem úteis à hora do perigo

Fico estupefato
com o sofrimento besta das gentes, que não era pra ser
enquanto noutra parte dançam e brindam à desfaçatez

Fico estupefato
com a injustiça que destampa na cara quando ouso comparar
as situações disparatadas do cotidiano

Besteira isso de ficar estupefato, eu sei. Mas eu fico.

Da arte

A arte é fascinante. Quando nos toca, passa a ser parte de nossa constituição, aloja-se na alma, metaboliza-se em nós. Não sabemos e nunca saberemos, concretamente, o estado de espírito do artista ao realizar a obra. Não vimos o que o pintor viu, não sentimos o que o poeta sentiu, não estávamos na cena que o escritor observou ao fazer o romance. Por que o músico usou aquela harmonia e não outra? Que pretendia o escultor ao dar o primeiro talho na pedra? Impossível saber.

Pouco importa, no entanto: ao nos depararmos com a arte, ela nos penetra, nos atinge fundo com sua beleza, seu esplendor, sua singeleza, sua força. E neste instante mágico, ela se desprende do autor: ganha vida própria e faz parte daquele que a contempla. É patrimônio pessoal e ao mesmo tempo universal. Transforma, enriquece a humanidade inteira a partir de um único indivíduo que dela desfrute.

Não é um mistério? Eis porque a arte é fascinante – as belas artes, para ser exato: ela é eterna, tanto quanto a alma é eterna, tanto quanto Deus é eterno. A arte é o próprio Deus a se exprimir, através do artista.

Noir

Miro tua foto que o tempo descoloria
Nela enamorei-me de teus límpidos olhos:
Penetram minh’alma até íntimos refolhos
Ó delicada musa, namorar-te-ia!

Em vão ano nasci, vã a hora em que morrias
Mas unirei-me a ti, minha menina-dos-olhos:
Magia ou sortilégio, qualquer meio escolho
Pois tal amor veraz eu jamais desprezaria

Parto sem temor, que deixar-te é agonia
Cativo voluntário, prisioneiro a voar:
Volto rumo a outrora, à sombra e luz noir

Cores, que são elas? Frívola perfumaria,
Tua expressão me basta, é perfeito convocar:
A mim requeres, sinto-o: diz-me teu lindo olhar!

poema veloz

vida prática, tão prática
que precisa se arranjar:
sem ter tempo pra poeta
— dá licença, tenho pressa!
(tenho é nada na cabeça)

          há que correr
          há que pagar
          há que comer
          há que estudar
          há que obter
          — e a lugar algum chegar.

trabalhar é o dever:
põe o ser pra funcionar
sem saber pra quê viver.

Lojinha

A lojinha velha e decadente:
Produtos sujos pendem das prateleiras.
A loja escura, quase sem freguês.

A cidade grita lá fora, fere o silêncio.
O tempo passa lá fora. O carro passa lá fora.
A ambulância canta, estridente, pede abertura:
De tudo acontece na via suja.

A lojinha parada, sempre aqui.
Sempre invisível. Sempre aberta.
Não sente o tempo, a ruga na cara dos outrora jovens
E o agito da geração sem nenhuma chance.

A cidade que não melhora,
Toda a gente que não muda:
O grosseiro, o crente, o mendigo,
A moça na bicicleta, o louco que grita
Com o demônio que só ele vê.

O homem sanduíche, envolto em sua placa.
A mulher distribui papéis cujo destino é o chão:
Lógica previsível, fato inevitável.

Esta é a cidade, assim é a avenida
E aqui, a lojinha. Aqui jaz a lojinha.
A prateleira triste, tão empoeirada!
De quê o senhor vive, se quase nada vende?

Mas eu entrei aqui. Avisto um item raro:
É meu! Não resisto: comprei.
Minha vinda à lojinha valeu a pena, enfim.

A tela

Eis-me defronte à tela branca e fria
Pincéis, paleta: preparo mil cores
Inspira minh’alma os muitos amores
Que obtive de ti, musa fugidia

Preencho e misturo suaves pinceladas
Deslizo o óleo na superfície nua
E eu que deslizava na pele tua
Tenho lembrança, tinta e mais nada

Matizes confundem, nada aparece
Nuances não vejo, nem visões sutis
Tal é nosso amor, que falha e fenece

As cores não vivem, há só luzes vis
Meu quadro está opaco, opaca é minha prece
Amar não queres: a tela não te quis