No consultório

Segunda-feira é dia de médico, e eu fui ao Dr. Siqueira.

Sempre gostei do Dr. Siqueira. Médico velho, CRM antigo. Até dá aula em faculdade. Esses eu respeito.

O Dr. Siqueira não é como esses médicos de hoje, não, muito bonzinhos e voz mansa; pelo contrário, Dr. Siqueira fala firme, até briga com a gente se precisar. Lembra um pouco meu pai.

Chego ao consultório.

“Vai mandar tirar a camisa”, penso.
“Vai lá, tire a camisa”. Acertei.

Põe o estetoscópio gelado nas minhas costas: “respire fundo.”

Respiro.

Dr. Siqueira examina minhas pálpebras, seriamente.

– É, o senhor está bem. Vou pedir uns exames aqui, de sangue, de urina. Pra garantir.

Pedido anotado, Dr. Siqueira puxa uma conversa:

– Mas e a patroa, não veio hoje? Ela sempre vem. Como ela está?

– Ela tá bem, doutor. Mas o casamento, nem tanto.

– É mesmo? O que acontece?

– Bom o senhor perguntar. Sobre isso vim falar com o senhor.

Após ouvir minha história, Dr. Siqueira fez uma receita e deu-me uns conselhos.

Saí do consultório, satisfeito. O Dr. Siqueira é a única pessoa em quem confio.

E quer saber de uma coisa? Não vou fazer exame nenhum.

Epifania
da Verdade

No leito da vida almejo um remanso:
a pura Verdade, o ímpar descanso.

Agita e revolve em mim a vontade,
e, inquieta, ela busca a realidade.

Fremente é meu passo e a bruma me encobre:
ofusca a senda que anelo encontrar.

Errante, dissipo a névoa e hesito;
aceito e recuo: não foi desta vez.

Indago: será a Verdade um molde
que molda o espírito e a alma, talvez?

De mim, ela tem a ínfima parte,
mas não o todo, a integralidade.

Pois a verdade me é desarranjada:
em mil unidades fragmentada.

Um dia, se encaixa o quebra-cabeças,
e tão vera imagem verei se formar?

Assim me será desvelado o mistério,
e a plena Verdade virá me habitar.

A bela

todos notavam
dela a beleza:
cada garoto
senhor idoso
mulher azeda
ele que é noivo…
um após outro
quando passava
não resistia:
lhe contemplava
passava e ia.
sempre assim era
hora por hora,
dia após dia:
e ela que a todos
a vista ornava
mal percebia.
num belo dia
enfim notara:
o tempo passou…
e ela que herdara
beleza rara
qual sua surpresa!
sozinha ficou.

A palavra

Existe a palavra.
Palavra nomeia, enumera, declara,
causa reação, espanto, emoção:
mas é só “palavra”!

A palavra é como uma chave que abre uma porta,
— uma não, várias portas — portais rumo ao Ser:
o único acesso ao Ser se dá pela palavra.

E o silêncio, é palavra não expressada?
E a imagem, é palavra não codificada?

Há o pensar sem palavra? Não há.
Palavra, quem inventou você?

O que é a palavra? Há quem a defina:
e usa… palavras. Tudo é assim:
ninguém escapa da palavra.

A palavra emerge do Ser, só pode ser.
Igual ao Verbo: palavra que “é”, palavra também.
Palavra, o que é? Como saber?

Leve digressão

Feitos grandiosos um dia almejei,
das belas obras o edificar:
para angariar respeito ao curriculum,
algo a outrem tentei provar.

Anos passaram e veio um porém:
o entusiasmo desabou ao chão.
E o coração murchou-se, em desdém:
“aqueles tais feitos, onde estão?”

Sucedeu a crise a reflexão:
“será possível algum dia, enfim,
quando farei algo além, ou senão,
qual sentido estar vivo tem?”

.   .   .

Eis deixei tudo com o Pai, meu irmão:
o mais vem Dele, pensei também.
O homem não vive apenas de pão,
nem sua alma de realização…

Na vida há o sim e há negação
e o que Ele nos der já está muito bem;
de meu destino fiz Dele artesão
para conceder o que me couber.
Amém.

Maria
do sertão

Maria Eleutéria, no alto sertão,
soca o milho no pilão, com esmero:
cedo dá de comer à galinhada,
que à sua roda espera o farelo.

Junho começa e Maria matuta:
“o mês inicia, é perto o São João.
A colheita foi miúda, é verdade,
mas graças a Deus não faltou o feijão.”

São João deverá ser festa bonita
e ela faz angu, paçoca e canjica.
E Nosso Senhor lhe dá o mantimento:
sobra até pra quem pedir alimento.

Mulher de fibra há no sertão, decerto:
há tempos levou-lhe o marido a morte,
e cinco crianças, por brio e sorte,
lutando criou, com Cristo por perto.

Metrópole

Metrópole.
Nascer em ti é não ter raiz:
vínculos duram um ano letivo.
Um dia festivo. Um emprego ativo.

Metrópole.
Nas multidões, milhares de solidões.
Nos entreolhares desconhecidos,
caras de mútuas suspeições.

Metrópole.
Alegrias etílicas, risos compulsórios:
toda inibição é quebrada
por extroversão forçada.

Metrópole.
Guetos e tribos: não-pessoas, fantasiadas.
Grades vigiadas: casas-prisão, torres-fortes.
Vultos através de vidros fumê, velozes.

Metrópole.
Viver, em essência? Fora de ti, apenas:
descalço no chão, comida com a mão;
nenhuma fachada ou civilidade inventada…

Metrópole.
Livrarei-me de ti, semi-perpétua prisão:
distante daqui, vida despojada,
a libertação mais que desejada.

— E quando este dia chegar, então,
mero vapor de lembrança serás:
tortura perene, nunca mais não.

…porque, no final das contas,
todo mundo está só.

Mesmo o mais
      solicitado
      requisitado
      sociabilizado
está só.

Dor se sente só.
Fome se sente só.
Sede, igualmente, só.
Responsabilidade?
Assumiu, ficou só.

Cooperação, solidariedade?
Convívio, afinidade?
Amor, amizade?
São finas cascas:
fragilidade.

A solitude é sentida
se a mão estendida
quando urge, se ausenta:
há o eu, mais ninguém.

Obviedades?
Bem o sei.
Não há nada de novo a dizer
neste mundo velho.

E quando tudo o mais finda,
incluindo a própria vida,
o que fica é solidão:

cabe somente um corpo
dentro do caixão.

A dança invisível

No meio do saguão,
ao longe, há uma dança:
num uniforme cor de nada,
com seu par ela balança.

Mil pernas passam,
ninguém lhe nota;
e nem mesmo ela
olha à sua volta.

A vassoura, empunhada,
é tácita companhia
a bailar com ela,
todos os dias.

A bailarina parece invisível.
Quem contempla sua arte?
Quem sabe seu nome?
Que sonhos tem?
— Certamente ela os têm.

No mar de interesses mil
ninguém dá a mínima
à tímida bailarina
que, cabisbaixa,
mal ousa levantar o olhar.

Mas ela, faxineira-dançarina,
não apenas dança e faxina:
tem alma e anseios, família, RG…
e dança a mesma dança da vida,
igual a mim, igual a você.

Minoria de um só

Sou de uma minoria:
Minoria de um só
Minoria, tão menor
Não é nem categoria

Unitário e recolhido
Dispenso inclusão
Quanto mais fora, melhor
Sou avesso à adesão

Reivindico minha mente
Ideologia sem par
Passo longe toda vida
De batalha popular

Militante ou ativista
Em nada disso me espelho
Hastear bandeira, nunca
Destes grupos de vermelho

Minha política é sossego
Minha paz, paz mundial
Solidão, minha utopia
Incoletiva pessoal