A lição de
João Cabral

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Trabalhei na famigerada Faria Lima entre 2013-15, no departamento de marketing de um banco não muito famoso. Como minha hora de almoço fosse mais prolongada (1h30, mas se passasse um pouco não tinha problema), eu aproveitava o intervalo para, além de obviamente almoçar, caminhar um pouco.

Andar sozinho não era problema para mim, pelo contrário. Aproveitava a caminhada para refletir e observar ao redor, algo que adorava e adoro fazer. Foi assim que descobri a biblioteca Anne Frank, meio escondidinha ali no bairro: toda murada com tijolos aparentes, o predinho térreo tem uma bonita arquitetura dos anos 1960 e, com charme peculiar, resiste discreta aos espigões envidraçados das redondezas.

Pois ali repeti um feito da puberdade, aos 12 anos: fiz uma carteirinha da biblioteca pela segunda vez na vida (agora aos 34), não sem antes assinar a entrada no livro de presença da recepção. Aquilo me trouxe certa emoção do passado.

Eu pegava livros de poesia emprestados para ler no Parque do Povo, a poucos metros dali. Certo dia, resolvo levar uma antologia de poemas do pernambucano João Cabral de Melo Neto, cuja obra não conhecia até então, só ouvira falar o nome.

Quando me aproximo do balcão da recepção, lembro bem a cara de espanto do bibliotecário, um senhor de cabelos brancos chamado Sérgio, “Seu Sérgio”. Ele disfarça a surpresa — com toda razão, imagino —, pois nenhum farialimer, mesmo técnicos do baixo escalão como eu, costumava entrar naquela biblioteca pública municipal para levar emprestado qualquer livrinho, quanto mais um volume de poesias.

Mas lá estou eu a ler o João Cabral no parque, quando este breve poema chamou-me a atenção:

O artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

Como tivesse de devolver o livro dali a uma semana, fotografei o poema com o smartphone e o guardei. Tenho até hoje a foto nas clouds da vida e ainda o releria outras vezes. Não sei, aquilo de certo modo ficou na minha cabeça, pelo seguinte: no período, eu começava a tomar umas notas que me vinham à mente — alguns versos de pé quebrado, umas reflexões; frases, epigramas, máximas; às vezes, anotava impressões a respeito de certas situações da vida e do cotidiano; tudo muito pessoal e subjetivo. Mantinha uma espécie de diálogo interno por meio daquelas anotações, também com a intenção de treinar a escrita.

Passado um tempinho, o material se avolumou, ganhou corpo; e eu ficava pensando se aquilo não serviria para algo mais sério, para publicar de algum jeito. Mas logo me retraía, pois lia gente bem melhor e mais experiente que eu a publicar ótimos textos em blogs e a ganhar popularidade nas redes sociais, com mérito justificado.

Embora chegasse a arriscar um bloguezinho de poesia e outro de prosa com aqueles textos, não dizia a ninguém, pois no fundo não me achava muito no direito de sair divulgando aquilo. Achava que fazer uns versos e uns textinhos pretensamente inspirados e sair compartilhando por aí só aborreceria aos outros, quase ninguém se interessaria pelas tentativas de um anônimo. O mundo não precisa de mais um diletante, pensava.

E não nego que ainda penso assim, vira e mexe o pensamento volta. Essas coisas nunca desaparecem totalmente. Aquele retraimento ainda ocorre hoje, embora de modo diferente. Varia de dia para dia, ora mais, ora menos, conforme o humor e o astral, digamos assim.

Voltando ao poema, imagino que o diplomata João Cabral — já imortal da ABL à altura da publicação, em 1975 — tivesse rabiscado aqueles versos em sua mesa de trabalho, como quem não quer nada; e, meio involuntário, fez uma peça importante (para mim, ao menos), enquanto aguardava na embaixada em Mauritânia um possível telex da capital federal — que decerto não mandavam tanto a terras tão ermas.

Mas que tem o poema de especial, em cujo sentido refleti depois de ler e reler algumas vezes?

Que toda arte ou mesmo tentativa de arte que fazemos, não importa o quão amadores sejamos, nunca será à toa, em vão; que aquilo que com sinceridade e entrega escrevemos — ou pintamos, desenhamos, compomos, cantamos, enfim —, tudo que expressamos artisticamente, uma vez divulgado, servirá de algum modo a alguém, nalgum momento e lugar; e que, justamente isso de chegar ao outro, ainda que somente a uma pessoa, valerá a pena este esforço do fazer, como diz o poeta recifense, mesmo que para criar algo tenhamos de abrir a fórceps o tempo diário e conjugar o trabalho criativo com outras tarefas a comprimir as horas do dia.

Pois costuma ser assim: de tantas prioridades aparentemente mais importantes que a criação artística livre e espontânea — sempre sujeita ao desânimo e ao abandono, pois demandada por absolutamente ninguém exceto nós mesmos —, deixamos de lado o registro de nossa expressão autêntica (que vale muito, mesmo que ninguém dê a menor pelota), e os anos passam, a vida passa… e deixamos o potencial artista em nós simplesmente morrer. É o caminho mais natural, que mais ocorre todos os dias com tanta gente, em variadas partes do Brasil. Tenho certeza.

O poema cabralino se dirige ao “artista inconfessável” — epíteto que o poeta atribuía a si, inclusive. Claro que, no nosso caso, embora quem sabe sejamos inconfessáveis por justas razões, não somos nem devíamos ser isentos de interesses. Temos em nós todos os sonhos do mundo, já dizia outro poema. Quem não gostaria de viver de sua arte, de sua criatividade e ofertá-la de bom grado a quem possa interessar? Quem não queria ver-se livre das contingências, da esterilizante responsabilidade diária, do trabalho alienado, e dedicar-se a algo belo, significativo, relevante?

Sim, queremos tudo isso. Sobretudo porque pouquíssimos nesta sombra do Ocidente podem viver da própria obra e dedicar seu tempo a ela, enquanto contempla a vista de sua bela casa campestre. No dito mundo civilizado, tal privilégio não costuma ser tão raro como aqui.

Bem, mas nada de lamúrias: sonhemos, que sonhar não custa nada, diz o chavão. Como João Cabral e seu “artista inconfessável”, sejamos impelidos a criar e fazer, apenas por fazer, apenas porque sim; pois a obra nunca será vã ou dirigida a ninguém, diz o poeta. Ela será útil a alguém — ainda que se chame Ninguém —, e sempre chegará num lugarzinho diferente de onde partiu, mesmo que jamais saibamos disso.

Ora, a prova está bem aqui, não? O poeta-embaixador nunca pensaria que certo fulaninho leria seu poema no século vindouro, tirasse lições dele e tratasse dele no futuro, divulgando-o para mais gente, numa corrente de transmissão invisível e dinâmica. Pode não parecer, mas afinal isso denota um poder grandioso e sutil, o poder contido no simples ato de criar.

Logo, significa que não há arte verdadeira que seja inútil, pelo contrário; se impelido, se chamado, o artista inconfessável deve somente fazer e deixar o resto com Deus e com o destino.

Mãos à obra, pois.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 15/06/2023



Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

os senhores respeitáveis

os senhores respeitáveis:
se reúnem novamente
os senhores respeitáveis.

deliberam, entreacordam,
engendram leis detestáveis
os senhores respeitáveis.

urdem tramas nos carpetes,
contra campos e cidades
os senhores respeitáveis.

jamais cuidam realmente
da gente as necessidades
os senhores respeitáveis.

dentro em casa, nobres damas
gestam a continuidade
dos senhores respeitáveis.

longe, esperam as amantes
que saciam apetites
dos senhores respeitáveis.

moral falsa: capa útil,
camuflagem das maldades
dos senhores respeitáveis.

desequívoco

não tenho lado, apenas percebo
não porto bandeiras, trabalho a intuição:
não vão atar-me a interesses sujos inconfessos
nem a perversas sensatezes cínicas
de mil e uma seriedades calhordas.

desistam de mim, senhores. desistam.
se me puxarem, não irei
se me desprezarem, os desprezei antes:
assim, empatamos;
mas eu triunfei.

o que quero? bem benigno e vero, em tudo e a todos
não só a conveniência vil e cega dos demônios.

eu vi: quis-se dinheiro de início, e isso foi tudo
hoje querem mais: prestígio, pétrea razão,
lavar cérebros suscetíveis.
ah, não o meu; o meu não terão.

se tenho agora lado? errado: apenas percebo
e se me puxam, não vou. desistam.

o que farei? cá estarei, só, se necessário for,
sem levar-me pelas ventanias da tolice (não tidas como tal):
eis meu singelo e atual heroísmo.

bem benigno quero: a mim, ao outro, em tudo.
de uma coisa sei: rejeito ao bem que no fundo é mal, porém.

Natal?

Fui assaltado no Natal. Na antevéspera de Natal.
De modo que, minha resposta chata à pergunta chata da tia chata,
“Sabes o sentido do Natal?”
Pelo menos o desse ano posso dizer:
“Sei. Assalto.”

Não, não gosto de Natal, desse período. Jamais gostei.
Natal é coisa pra americano brincar de neve na tevê.
Aqui, nem neve a gente tem:
faz um calor dos diabos no hemisfério.

Natal é uma coisa que o Brasil aprende na tevê,
pra comprar e gastar com Coca-Cola.
Isso: Natal é invenção da Coca-Cola.

Natal é dar e ganhar presente errado;
ter gratidão por ganhar aquilo que detesta,
de quem te presenteia como quem zomba de ti.

Todos comem no Natal: bebem, incham, vomitam no Natal.
Peru com Aji-no-moto, glutamato monossódico que mata.
Frango peitudo-gigante, puro hormônio-antibiótico vendido bem caro.
(Depois a sobra vira salsicha baratinha.)

Mas fui assaltado no Natal.
Cadê o espírito do Natal?
Esse é o espírito do Natal.

Tu, que tens a fé popular da vovó boazinha
Tu, que pensa em renas no país das antas
Tens-me agora por blasfemo, bem sei.
Seu tolo. Seu tolinho:
Pois nem Jesus, nem o menino Jesus do presépio jamais gostou do Natal.
“Nada tenho com isso”, diria São Nicolau.

Sabes quem gosta do Natal?
O ladrão que me assaltou.
Ele, como tu, comeu peru com glutamato,
ganhou presente detestável,
viu rena e neve na tevê,
bebeu Coca-Cola com o fruto do roubo
e me acharia blasfemo (ladrão odeia blasfêmia)
se lesse — se entendesse — o que escrevo aqui.

Sim, o ladrão pensa igual a ti e a todo mundo.
O ladrão só queria um Natal bom:
Por isso mesmo assaltou.

A revanche

As certezas todas e meus arrimos
A um só tempo mostraram-se inúteis:
À ruptura dos tempos, calei, amargurado.

Ao derredor vi alegres niilistas,
Férteis e prósperos a vicejar,
E a negar minha expectativa
Dum inevitável e exemplar castigo.

Justiça divina? Justiça minha:
A duras penas descobri.
Mas não me arrependi. Fechei-me
Em sérias convicções a eles obsoletas,
quiçá risíveis, quando as expunha.

Depois, encasulei-me: tranquei da alma
As portas e janelas, cerrei as cortinas.
Pouco se me dava, fosse noite ou dia
Ou data festiva: queria de volta
O tempo aprazível, a beleza sã,
Seguro esteio que neguei ser ilusão.

Então o jogo contra mim virou-se
As chances todas me foram contrárias.
Decidi: faria eu mesmo um jogo, só meu:
Pregaria no deserto, a pedras, plantas
E a quem mais quisesse ouvir-me.

Vã operação? Talvez, havia a hipótese.
Se me cressem todavia, ah, se um par de almas ouvisse!
Lançaria miúdas sementes e, no entanto, perigosas.

Quanto àqueles, pagariam o menosprezo
De repisarem, destruírem tudo que eu amava.
Decerto, caro pagariam: oportunamente.

Pois era aquela a minha vez:
Naquele instante o vendaval se fez.

Sacrifício

Exigiram-me tanto, e por tantos anos…
Minha sina foi ser preterido, recusado

Encetei um esforço sobrehumano:
Alcei-me qual Ícaro à altura das demandas
E, de fato, voei
— a uma altitude julgada insuficiente, porém.

Equipei-me, treinei, lancei mão dos recursos
que a última tecnologia disporia:
Duro lance que levou nervos, tempo e energia:
— minha própria vida.

Não obstante, consegui! Superei e bem alto voei!
Aqueles, contudo, eram outros requisitantes
Cuja opinião compartilhada foi a de que voadores
Era coisa já obsoleta e ultrapassada.

Destarte, toda minha vaidade alada
Se esvaiu num átimo, ante a cíclica negação
De iníquos que se alternam, o tempo todo,
E detém nas mãos o poder de decidir.

Alma
gêmea

Quem dera os sentidos de meu corpo
Suplantassem a vil matéria
E adentrassem a malha etérea
De tua alma, além da forma:

Saber na fonte intuições
Inefáveis, tua própria metafísica
Que mesmo a razão pura inalcança.

Quisera eu deslizar, feito plasma,
Na compleição pulsante e viva
Onde o pensar não brotou, não nasceu:
Pré-verbal, embrionário, substancial.

Quem sabe se lá, eu penetrado,
Visse, com olho vão e limitado,
O amor nascente em teu espírito nuclear

E no lago onde repousam tuas vivas emoções
Nítido, contemplasse, refletido à superfície
A inequívoca presença do meu eu.

volta

desista, ele disse:
desista de poemas.

crédulo e dócil
à autoridade da mera voz grave
e unanimemente respeitada
acreditei
e parei.

.   .   .

esterilidade e silêncio.

.   .   .

tudo graças a ele,
autoridade da mera voz grave
cujo nome figurava no topo da hierarquia.

obedeci: não sei quê me deu.
fiz-me nulo.
calei.
contudo, não recebi agradecimento de nenhuma espécie
pela deferência à ordem estabelecida.

depois, eu vi.
não sei como, vi:
entendi que parar não devia:
retomei.

a mera voz grave, já sem autoridade, posto que ignorada
é despreocupadamente desobedecida,
a despeito do perigo iminente nunca concretizado,
e chutada prum canto qualquer, a hierarquia.

faço e farei poemas.
cala a voz má: não sei quê lhe deu.
já quanto a mim
constante e suave
renasce-me a força.