A tela

Eis-me defronte à tela branca e fria
Pincéis, paleta: preparo mil cores
Inspira minh’alma os muitos amores
Que obtive de ti, musa fugidia

Preencho e misturo suaves pinceladas
Deslizo o óleo na superfície nua
E eu que deslizava na pele tua
Tenho lembrança, tinta e mais nada

Matizes confundem, nada aparece
Nuances não vejo, nem visões sutis
Tal é nosso amor, que falha e fenece

As cores não vivem, há só luzes vis
Meu quadro está opaco, opaca é minha prece
Amar não queres: a tela não te quis

Além

Ninguém sabe o que há para Além:
sabe-se, porém, que o Além há.

Muitas coisas ensinou-me
a religião; contudo permanece,
intocado, o mistério

Isto, a que chamam pecado
talvez devêssemos chamá-lo,
simplesmente, controle?
(seria mais honesto).

O Infinito, o todo inimaginável
pensaram feito pessoa:
rosto, porte e imaginação.
então, lidamos com Alguém
a quem chamamos Deus.

Fé: eis o máximo que é dado
do Além a nosso ser limitado

Ninguém conhece o Ser,
a contingência inabarcável.
calem-se, pois, sacerdotes:
não sabem do quê falam,
qual todo mundo: nada sabem.

O mundo é idéia, idéias sem fim,
e há juízes demais, por toda parte:
iníquos, hediondos, pútridos, eles fedem,
feito eu, feito você e qualquer outro

A pureza, o Ser essencial, o mortal
jamais alcança. Somos cegos e cegos,
tontas alminhas, de costas ao etéreo:
indignos de todo transcendental.

Da virilidade

O varão de outrora:
singrava mares,
explorava terras,
subjugava feras,
erguia altares.
Nas longas jornadas, saudosas ausências:
donzelas amadas a reencontrar.

O mundo atual, arqui-desbravado, tecnológico:
parafusos e porcas, amontoados.
Mil telas luminescentes, nada a observar,
faces estranhas a nos ordenar.

Códigos tolos em tudo apontam:
o quê fazer,
em quê pensar,
o quê comer,
o quê negar e o quê aprovar.

Foi-nos embora
a auto-determinação,
a autodefesa,
a subsistência.

Quem ainda planta pra colher?
Quem ainda caça pra comer?
Há sempre um fantasma, desconhecido, distante
Pago para tudo por nós fazer

A força que antigas máquinas demandavam
trocou-se por toques em telas, delicados:
pensar não é preciso; basta operar.
Não há em nada disso sentido.

A vida do Homem tem sentido se plena
de nobre missão, o senso do bem, cumprir seu dever.

Por isso é que anulam a virilidade:
sem ela o Homem não pode viver

— não querem deixar o Homem viver.

Eu gosto
de livro

Gosto de livro.

Gosto de livro, arte visual.
Gosto de livro, papel, digital.
Gosto de livro até enquanto tal.

Gosto de livro, edição, autoria.
Gosto de livro, sebo e livraria.
Quase estudei biblioteconomia!

Gosto de livro: velhinho, seboso.
Gosto do cheiro que tem livro novo.
Gosto de livro, garimpo tesouros.

Ler livro é frescura? É literatura.
É disso que gosto, é nisso que gasto.

Nos livros descubro segredos de Deus.
E em cada leitura sei mais quem sou eu.

Ninfa

Leva-me, ó ninfa, em afável mistério
Que no rubro enlaçar de teus cabelos
Envolvo-me em teus cachos, tão vermelhos
Num doce voar, qual pássaro ou ébrio

Revela-me a alma, quem sou e não sabia:
Segredos sublimes, a mim mesmo ocultados
Mergulhe na essência e eu, maravilhado
Ouço mil cantos que eu desconhecia

Transponho o visível, em doce fantasia
Teus toques de seda perpassam-me amor
Acabam infortúnios, esvaem-se apatias

Passeio em tuas curvas, bela simetria!
Embevecido, transcendo minha dor:
Só tu, ó ninfa, restauras-me a alegria

Guerreiro ferido

Descansa, meu filho, agora descansa:
Despido esteja de amargos temores
Respira e resguarda tua esperança
Que os vis espinhos protegem as flores

Refaz já teu brio, galopa a vingança
Ergue tua fibra, vêm dias melhores
Um passo apenas, contempla a bonança:
Vão-se tormentas, saem dissabores

Junta teus cacos: sê, pois, confiante
Renova em teus olhos um brilho vivaz
Com fé prossegue, tenaz, sempre avante

Se ontem caístes, és sobrevivente
Esteja em perigo, ó inimigo mordaz
Retorna e conquista, grande valente!

Pichado amor

Num muro da cidade, a inscrição
profundamente prosaica, diz:
“mais amor, por favor”.
Assim reclama o neo-chavão.

Medito e penso: errado pedido.
Sai, desde a base, deslocado:
pois pede-se um amor medido,
um pseudo-amor, quantificado.

Querem amor em porções,
vendido em doses, multicores?
O que entendem ser o amor,
ó tristes almas pós-modernas?

Tomam por amor a vã complacência,
sentimento cortês, boa convivência…
Como amar mais, amar menos?
Há o amar, completamente.

Que é amar?
é negar-se, é sofrer, é crer, abdicar;
é coragem, é doar e não requisitar.
Peso e medida não tem:
o amor não se pode mensurar.

O único amor possível
é dádiva suprema:
virtude por meio da qual
todo bem deriva.
Nasce, flui, total, não parcial
vem do Eterno e inunda a vida.

Nesse uno amor, desnecessário é
rebaixar-se e implorar, em muro sujo,
por um sentir abstrato e obscuro
a desatentos transeuntes.

O violeiro

Todo dia, na rua do bairro fabril e decadente
o violeiro senta-se com sua viola.
Entre um acorde e outro, o caipira desraizado
levanta a aba do chapéu, cumprimentando
transeuntes e carros que o ignoram, apressados.

Ele, com intransponível disposição
mantêm serenos o olhar e o sorriso,
esperando qualquer moeda
ou um miúdo cair no chapéu
que ao chão jaz depositado.

Enquanto pedestres, atarantados,
não o olham, nem o percebem,
cada dia um pouco noto,
o pouco caso deste curioso retrato.

Chegará, pois, o dia:
operários em seu passo
patrões em seus carros
cruzarão a esquina, na diária rotina
e o violeiro não se achará mais ali:
     com seu chapéu,
     o sorriso ameno,
     seu semblante marcado
     o surrado instrumento.

Não lhe saberão o nome e a história de vida
se mesmo foi feliz sua existência.
E o bairro fabril, cinzento e decadente,
continuará cheio de atarefados passantes
e quase sem nenhuma gente.