Zeitgeist

Meus risos andam tão raros…
Quem dera ter a alegria fútil das ruas: não posso.
Não disparo chavões como se fosse inteligência.

Vida social é cumprir convenções:
o agir compulsório, facilitar convivências.
É o preço por preservar minha paz:
conviver é fazer deferências.

Ceder. Ser cortês a cidadãos
quase sempre indesejáveis.
Tolerância, exerço aos bocados:
baldes dela são derramados.
Estoques imensos de compreensão
a tolos que espocam, em borbotão…

Sou inferior a quem tolero.
Conformo-me:
eles receberão a virtude reclamada,
eles, privilegiados
eles, semi-reis.

Haverá algo mais doce
de que obter compreensão
e nunca ter de compreender?
Eis aí a conveniência dos estúpidos.

É uma época propícia aos idiotas
— azar meu ousar não sê-lo.

Receba eu, pois, todas as cobranças,
e pague-as em dia, uma após outra.
De volta? Ganhe desprezo, indiferença,
e de bônus, covardia.

Não é mesmo uma época propícia aos idiotas?
E eu ousei não sê-lo.
Quanto a eles…
Nunca foram tão felizes.

O muito

O muito aprender fez-lhe afetado.
O muito duvidar fez-lhe amargo.
O muito discordar fez-lhe cínico.
O muito falar fez-lhe raso.
O muito pensar fez-lhe instável.
O muito escrever fez-lhe pernóstico.
O muito ler fez-lhe pedante.
O muito doar fez-lhe miserável.
O muito guardar fez-lhe miserável.
O muito crer fez-lhe fanático.
O muito descrer fez-lhe estúpido.
O muito transgredir fez-lhe oco.
O muito criticar fez-lhe apático.
O muito aceitar fez-lhe joguete.
O muito negar fez-lhe desprezível.
O muito adiar fez-lhe inútil.
O muito apressar fez-lhe estéril.
O muito exibir fez-lhe banal.
O muito ganhar fez-lhe egoísta.
O muito perder fez-lhe indolente.
O muito amar fez-lhe carente.
O muito é vário e a lista não cessa.
O muito não presta.
O muito é um mal.

Escute, Catarina

Sabe de uma coisa, Catarina?
Foi tudo aparência. Mera fantasia.
Veja nossa vida:
tão séria, estabelecida, documentada…
Ela foi, de verdade, vivida?

Falo por mim: sempre fui lógico.
Tediosamente lógico.
E era pragmático:
Tão fácil é ser pragmático
antes do castelo desmoronar…

Pensávamos haver uma vida normal…
Que risível, Catarina.
Vida alguma é normal.
Normal é ponto de vista, menina.

Fizemos o mesmo, todo dia,
Não mudamos vírgula:
Isso não nos fez alguém normal.
Normal foi só a rotina.

E tanta gente viveu diferente:
eram exóticos aos nossos olhos.
Mas também eles viam-se normais.

Não fique surpresa, Catarina…
Eles diferentes, nós sempre iguais:
somos todos idiotamente reais.

Festas

Eu não gosto de festas.
Nas festas, é regra fingir alegria.
Há que sorrir, mesmo sem querer.
Há a obrigação de ser sociável.

Não. Digo “não” a ambientes artificiais.
Se for a festas, serei um personagem.
Farei tipo, um horror:
Sei que sou péssimo ator.

Por outro lado, gosto de alegria:
Alegria natural, quase boba.
Gosto daquela risada espontânea,
gostosa, do dia-a-dia.

quinze

quem vê meu rosto, hoje,
pensa que sou mais velho:
é que pensei demais.

por muitos anos
pus sobre os ombros
a obrigação da great performance:
o velho dever masculino
de ser bem-sucedido.

— ao diabo com tanta gravidade!

quero poder errar e rir,
errar e rir como uma menina
de quinze anos olhos azuis cabelos pretos.
dela, nada se espera:
a vida dela é leve e bela.

Centro velho

Detenho-me numa esquina do centro velho.
Observo pessoas, fisionomias…
Rostos graves. Rostos aflitos.
Rostos com fáceis alegrias.
Rostos, vários: parte visível de almas
Exprimindo coisas que eu não sabia.

Penso nos antigos que aqui andaram
Quando este lugar não era velho.
Quando era apenas centro.
Quando era apenas lugar.
Centenas de anos atrás…

Por cá passaram outros rostos aflitos.
Rostos alegres. Rostos graves.
Crianças brincaram em torno,
como se tivessem a eternidade em si.
E tinham: eternidade não percebida
envolvida em riso e brincadeira.

Mil tribulações trazem os homens
Que passam apressados no centro velho.
Outros riem, só riem: têm nada a perder.
Crianças de hoje como as de outrora, felizes,
passeiam contentes na velha calçada
Gastando o viço que merecem ter.

Séculos foram-se e o centro ficou:
Milhões de homens aqui pisaram.
Milhões de crianças aqui brincaram.
Faces e dramas se repetiram:
As almas humanas nunca diferiram.

Que curioso esse lugar antigo…
Quer por ele passe carranca, quer riso,
Ele não passa duma brincadeira
Simples pedaço de existência humana.

Quem sabe amanhã, alguém veja assim
E preste atenção ao que noto agora.
Quem sabe amanhã, quando em silêncio,
longe desse centro, nem mais der por mim.

A mulher
potente

A mulher potente prepara o cabelo, preenche a bolsa
põe o sapato, aperta o passo, passa firme
fere o piso, num porte convicto

A mulher potente, forte e altiva
é bem preparada. Ela não projeta
a fragilidade ridícula
da mulher antiquada
de face ingênua e enrubescida:
não, a mulher potente não.

Ela é mais que mulher, mais que homem
ela manda no homem, ela manda em tudo, ela pisa no mundo
ela pisa na vida, ela sobe no salto
e prorrompe a doutrina
incontestável.

A mulher potente não se submete
não obedece a ninguém, não senhor:
a todos impõe seu poder
até o sol se pôr…

…e então, recolhe-se.

Diminuída, desnuda-se.
Só, olha seu corpo em pele no espelho
lava seu rosto e o vê como de fato é:
cansado
da postura postiça diária.

Ela não sabe bem quem é.
Ela não mais se reconhece.
Provou ao mundo sua eficácia
convenceu e venceu, ela:
por implacável competência
por inexplicável capacidade.

Porém, a mulher simples nela
a substância mulher
acha-se encolhida
e chora, abaixada:
sente uma tristeza…
um frio interno
a alma gelada
o coração oco…

Uma mulher que não foi mulher.
Que não foi feliz.
Que não foi ninguém.

A mulher potente que ao homem humilhou
e fez no mundo o que quis
prisioneira da própria potência
hoje detesta o que se tornou.