Pseudoconselho

Ficam proibidas as músicas românticas.
Ninguém mais ouse cantar músicas românticas!

Use a mente, somente; o coração não.
Não vês que a dissimulação é a única ação
aceita e aprovada — socialmente praticada?

Ora, ser romântico leva a nada…

Estes sentimentos, que trazes em ti?
Tão logo o expresses, alguém se ri!

Põe tuas melodias numa gaveta, trancadas
Pois românticos, hoje, são como bêbados
trôpegos e errantes na beira da estrada.

No consultório

Segunda-feira é dia de médico, e eu fui ao Dr. Siqueira.

Sempre gostei do Dr. Siqueira. Médico velho, CRM antigo. Até dá aula em faculdade. Esses eu respeito.

O Dr. Siqueira não é como esses médicos de hoje, não, muito bonzinhos e voz mansa; pelo contrário, Dr. Siqueira fala firme, até briga com a gente se precisar. Lembra um pouco meu pai.

Chego ao consultório.

“Vai mandar tirar a camisa”, penso.
“Vai lá, tire a camisa”. Acertei.

Põe o estetoscópio gelado nas minhas costas: “respire fundo.”

Respiro.

Dr. Siqueira examina minhas pálpebras, seriamente.

– É, o senhor está bem. Vou pedir uns exames aqui, de sangue, de urina. Pra garantir.

Pedido anotado, Dr. Siqueira puxa uma conversa:

– Mas e a patroa, não veio hoje? Ela sempre vem. Como ela está?

– Ela tá bem, doutor. Mas o casamento, nem tanto.

– É mesmo? O que acontece?

– Bom o senhor perguntar. Sobre isso vim falar com o senhor.

Após ouvir minha história, Dr. Siqueira fez uma receita e deu-me uns conselhos.

Saí do consultório, satisfeito. O Dr. Siqueira é a única pessoa em quem confio.

E quer saber de uma coisa? Não vou fazer exame nenhum.

Epifania
da Verdade

No leito da vida almejo um remanso:
a pura Verdade, o ímpar descanso.

Agita e revolve em mim a vontade,
e, inquieta, ela busca a realidade.

Fremente é meu passo e a bruma me encobre:
ofusca a senda que anelo encontrar.

Errante, dissipo a névoa e hesito;
aceito e recuo: não foi desta vez.

Indago: será a Verdade um molde
que molda o espírito e a alma, talvez?

De mim, ela tem a ínfima parte,
mas não o todo, a integralidade.

Pois a verdade me é desarranjada:
em mil unidades fragmentada.

Um dia, se encaixa o quebra-cabeças,
e tão vera imagem verei se formar?

Assim me será desvelado o mistério,
e a plena Verdade virá me habitar.

A bela

todos notavam
dela a beleza:
cada garoto
senhor idoso
mulher azeda
ele que é noivo…
um após outro
quando passava
não resistia:
lhe contemplava
passava e ia.
sempre assim era
hora por hora,
dia após dia:
e ela que a todos
a vista ornava
mal percebia.
num belo dia
enfim notara:
o tempo passou…
e ela que herdara
beleza rara
qual sua surpresa!
sozinha ficou.

A palavra

Existe a palavra.
Palavra nomeia, enumera, declara,
causa reação, espanto, emoção:
mas é só “palavra”!

A palavra é como uma chave que abre uma porta,
— uma não, várias portas — portais rumo ao Ser:
o único acesso ao Ser se dá pela palavra.

E o silêncio, é palavra não expressada?
E a imagem, é palavra não codificada?

Há o pensar sem palavra? Não há.
Palavra, quem inventou você?

O que é a palavra? Há quem a defina:
e usa… palavras. Tudo é assim:
ninguém escapa da palavra.

A palavra emerge do Ser, só pode ser.
Igual ao Verbo: palavra que “é”, palavra também.
Palavra, o que é? Como saber?

Leve digressão

Feitos grandiosos um dia almejei,
das belas obras o edificar:
para angariar respeito ao curriculum,
algo a outrem tentei provar.

Anos passaram e veio um porém:
o entusiasmo desabou ao chão.
E o coração murchou-se, em desdém:
“aqueles tais feitos, onde estão?”

Sucedeu a crise a reflexão:
“será possível algum dia, enfim,
quando farei algo além, ou senão,
qual sentido estar vivo tem?”

.   .   .

Eis deixei tudo com o Pai, meu irmão:
o mais vem Dele, pensei também.
O homem não vive apenas de pão,
nem sua alma de realização…

Na vida há o sim e há negação
e o que Ele nos der já está muito bem;
de meu destino fiz Dele artesão
para conceder o que me couber.
Amém.

Maria
do sertão

Maria Eleutéria, no alto sertão,
soca o milho no pilão, com esmero:
cedo dá de comer à galinhada,
que à sua roda espera o farelo.

Junho começa e Maria matuta:
“o mês inicia, é perto o São João.
A colheita foi miúda, é verdade,
mas graças a Deus não faltou o feijão.”

São João deverá ser festa bonita
e ela faz angu, paçoca e canjica.
E Nosso Senhor lhe dá o mantimento:
sobra até pra quem pedir alimento.

Mulher de fibra há no sertão, decerto:
há tempos levou-lhe o marido a morte,
e cinco crianças, por brio e sorte,
lutando criou, com Cristo por perto.

Metrópole

Metrópole.
Nascer em ti é não ter raiz:
vínculos duram um ano letivo.
Um dia festivo. Um emprego ativo.

Metrópole.
Nas multidões, milhares de solidões.
Nos entreolhares desconhecidos,
caras de mútuas suspeições.

Metrópole.
Alegrias etílicas, risos compulsórios:
toda inibição é quebrada
por extroversão forçada.

Metrópole.
Guetos e tribos: não-pessoas, fantasiadas.
Grades vigiadas: casas-prisão, torres-fortes.
Vultos através de vidros fumê, velozes.

Metrópole.
Viver, em essência? Fora de ti, apenas:
descalço no chão, comida com a mão;
nenhuma fachada ou civilidade inventada…

Metrópole.
Livrarei-me de ti, semi-perpétua prisão:
distante daqui, vida despojada,
a libertação mais que desejada.

— E quando este dia chegar, então,
mero vapor de lembrança serás:
tortura perene, nunca mais não.

…porque, no final das contas,
todo mundo está só.

Mesmo o mais
      solicitado
      requisitado
      sociabilizado
está só.

Dor se sente só.
Fome se sente só.
Sede, igualmente, só.
Responsabilidade?
Assumiu, ficou só.

Cooperação, solidariedade?
Convívio, afinidade?
Amor, amizade?
São finas cascas:
fragilidade.

A solitude é sentida
se a mão estendida
quando urge, se ausenta:
há o eu, mais ninguém.

Obviedades?
Bem o sei.
Não há nada de novo a dizer
neste mundo velho.

E quando tudo o mais finda,
incluindo a própria vida,
o que fica é solidão:

cabe somente um corpo
dentro do caixão.

A dança invisível

No meio do saguão,
ao longe, há uma dança:
num uniforme cor de nada,
com seu par ela balança.

Mil pernas passam,
ninguém lhe nota;
e nem mesmo ela
olha à sua volta.

A vassoura, empunhada,
é tácita companhia
a bailar com ela,
todos os dias.

A bailarina parece invisível.
Quem contempla sua arte?
Quem sabe seu nome?
Que sonhos tem?
— Certamente ela os têm.

No mar de interesses mil
ninguém dá a mínima
à tímida bailarina
que, cabisbaixa,
mal ousa levantar o olhar.

Mas ela, faxineira-dançarina,
não apenas dança e faxina:
tem alma e anseios, família, RG…
e dança a mesma dança da vida,
igual a mim, igual a você.