Cordel da sina do brasileiro

O brasileiro só vive em mau-trato,
Vem desde o nascer, desde o parto.
É xingo da mãe, do pai sopapo,
E se indagar, patada é no ato.

Cresce de tal modo violento e confuso,
Que quer se vingar num inimigo difuso:
Em qualquer um, mulato ou cafuzo —
Busca nisso algum alívio abstruso.

Vem lá de pequeno, este é o problema:
Só vê feiúra, envolto em dilema.
E se estragando neste sistema,
Sua vida não encontra um estratagema.

Ah, se o Brasil conhecesse a beleza!
Não o falso belo, mas a sutileza…
Cada qual criado sempre em gentileza,
Eis gente elevada, de delicadeza!

Seria possível que a dificuldade
Se superaria e a necessidade,
Com uma só dose de boa vontade,
Lugar daria à felicidade.

5/7/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Vazio em mim

Existe em mim um imenso vazio
Que nunca confessei
Disfarço, sorrio, dou voltas, despeço
Dissimulo bem
Será que eles percebem?
Sou infeliz e não conto a ninguém

Esse nada interior é produto
Da fuga desesperada diária
De mim mesmo
Do meu passado
Do meu presente
Desagradável

Existo como se aqui não estivesse
Quem dera…
Não precisar representar um papel
Viver para os outros:
Esse não sou eu.

Preciso resolver e é difícil
Me encarar, abandonar de vez
As performances, as caras e bocas
Inúteis disfarces, ridículas máscaras
Vida de entulho amontoado na alma
Caricatura do ser ideal

Quem sou eu, de verdade?
Sou a cabeça no travesseiro
Que chora em silêncio, no escuro
Pensa, repensa e mergulha em mim:
A sós comigo, só Ele me vê
Só Ele me entende

Serei preenchido é por Deus…
Preciso e quero: assim decidi.
E pôr tudo a perder?
Tudo o quê?
Tudo a ganhar…
Só tenho este exato momento
E a hora é já.

Humildemente,
Começo uma oração.
Do jeito que dá. Do jeito que eu sei.
Ele ouvirá.
Jesus ouvirá.

21/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

José Emanuel
Dias da Silva

José Emanuel Dias da Silva.
Nome comprido, RG curto: década de 60.
Planejava se aposentar.
Naquele dia, colocou a roupa, ajeitou a gravata.
Tomou o café. Silenciosamente.
Pegou o táxi e foi ao trabalho.
Igual todo dia.
Subiu ao andar, sorriu pra secretária bonita do chefe.
Falou bom dia.
Tomou cafezinho, comentou a rodada do futebol.
Riu.
Checou os recados em cima da mesa.
Listou as tarefas, terminou a de ontem.
Respondeu ao e-mail: digitou digitou.
Olhou para o lado, o peito apertado.
E, de repente, desmoronou.

.    .    .

— Enfarte do miocárdio.
José Emanuel Dias da Silva deu entrada às 9:20 no PS.
Às 10:30, faleceu.
Num dia normal, anormalmente.
O RH mandou circular lamentando o ocorrido.
À tarde, choveu.

21/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

O popular

O popular adentra o ambiente:
Fala frases feitas (e fala alto!)
Ocupa o espaço, rouba a atenção
Aponta o dedo, cutuca do lado
Quer ser o centro da situação

Ri de si mesmo, de velhas piadas
Dispara-as todas em repetição
Tenta perturbar quem estiver quieto
E de todo mundo requer adesão
Impertinente, se entende benquisto
E é só suportado, com educação

12/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Canção
do Saber

Ninguém é o mesmo após saber algo
Nunca mais é, por mais que o queira…

.    .    .

Se menos soubesse, eu não sofreria
Se menos soubesse, não me faltaria
O que desconheço, e nem poderia
Pois o que não sei, por não saber
Em minha alma não existiria

.    .    .

Talvez seja este o preço a pagar
Por ver claramente a realidade:
A ninguém jamais poder explicar
Se já não há quem queira a verdade

.    .    .

Saber é fiar-se, é se amarrar
É pactuar com a Consciência
E para trás não poder voltar:
O Saber reflui, em reminiscência

Saber é riqueza, mas não recompensa
Tesouro no âmago, peça de museu:
Tem suma importância, tanto representa
Mas é velha História que amareleceu

.    .    .

Devia a infância ser época mágica
Tão pouco se sabe, viver é brincar
Apenas se vive a realidade
Sem jamais com ela se preocupar

Tudo que chega na infância, vivemos
Quando os anos passam, vem o recordar:
Por que em tais laços assim nos metemos?
E como aqui viemos parar?

.    .    .

Solução, talvez, seja o saber menos
E do que sabemos, só vivenciar
Toda parte boa, agradável e bela
Que a realidade, nem sempre tão dura
Capaz, assim, seja de nos dar

8/6/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Seu Pedro,
um brasileiro

Conheçam Seu Pedro, homem atual
Mantém-se informado no telejornal
De tanto assistir, descobriu o mal:
“Propina, político e marginal!”

Seu Pedro aposta na Federal
E almeja voltar à cidade natal
Quando faturar o valor colossal
“Ah, se ganhar, alegria geral!”

Suspira em seu sonho habitual:
“Cidadão ilustre lá na capital
Distinto e grande seria afinal
Bem considerado, fará nada mal!”

Seu Pedro, retrato comum nacional
De mediocridade tão fundamental
Despreza político e marginal
Mas grana no bolso o faz quase igual

18/5/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Casa americana

Quando vejo na tevê uma casa americana
É bonita, de madeira azul clara e porta e janela branca
Com um gramado na frente

A rua é calma e todo mundo sorri
Não tem subida ou descida, tudo é reto e plano
Diferente, diferente de tudo daqui…

Aqui a rua sobe e desce, a calçada é torta
Muita gente passa, quase ninguém sorri

Portão de chapa cinza cadeado cachorro que late
O carro é mais bonito que a casa de cimento grosso

Nada combina, nada está pronto
Violento de ver, feio de ver (que angústia)

Queria sair daqui…

Morar numa casa americana
De madeira azul clara e porta e janela branca
Onde todo mundo sorri
Onde o carro é bonito como a casa

Diferente, tão diferente de tudo daqui

17/5/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Soneto
do alerta

A alma dentro em mim resguarda um pranto
No peito um grito aberto ao mundo clama:
“Ó néscios, despertai, lá vem a chama
Senão, durmam e acordem por espanto!”

E giram tresloucados, não percebem:
Matéria, bens, dinheiro, riso e fama
No espírito, se Amor não se derrama
Vereis, pois, se algum dia não vos levem!

É fácil dar de ombros, certamente
Rirem-se de meu apelo, em zombaria:
“Ah, paranóico és tu, completamente!”

Mas eis caminha a hora e velozmente
Sem falta o chorarão, à revelia
De quem vos alertou anteriormente.

17/5/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente

Mulheres urbanas

Mulheres urbanas são felizes
Elas dizem que não, mas são

Desrefletem, adaptam-se
Vivem preocupadas sem preocupação
Assumem mil formas

Imiscuem-se em tudo que se pode imiscuir
Se é difícil, desgarram-se

Distribuem o peso do fardo, elevam-se
Sobrevivem e sorriem.

Mulheres urbanas são felizes (porque são leves)
Elas dizem que não, mas são.

10/5/2014


Publicado originalmente no blog Letra Nascente