QUINTA-FEIRA, final de tarde. Faz frio. Entro no bar que acaba de abrir. Salão vazio, escuro: dia de pouco movimento, somente funcionários arrumando toalhas nas mesas. Sento-me ao fundo, num cantinho próximo à vidraça. Ouço o arrastar das cadeiras, aqui e ali. Barulho irritante.
Chamo o garçom. Ele vem de-va-gar em minha direção e me atende sem olhar nos olhos. Pela expressão, pareço incomodá-lo com minha presença, como se fosse um intruso ali. Vai ver cheguei na hora errada. Pode ser. Peço uma garrafa de pós-modernidade, com gelo no copo.
O rapaz traz a bebida. Não, não vou comer nada. Primeira dose. Sorvo a pós-modernidade, sinto a textura na língua, lentamente: não por qualquer ritual, nem porque a bebida custe muita coisa. É que gosto de apreciá-la sem pressa.
Esse bar é famoso por vender muita pós-modernidade para clientes notívagos, insones que aparecem tarde da noite. Quem os vê, não sabe se o que os desinibe é a bebida ou a própria conversa — frequentemente frenética, com frases entrecortadas — ou o cigarro, tabaco ou cannabis, que lhes desperta o frenesi. Foram alguns deles que me apresentaram a pós-modernidade, exatamente aqui, há exatos dois anos. Experimentei, gostei, e não parei mais.
Mas voltando ao presente. Eu, nesse bar que mal acaba de abrir, não sou o tipo costumeiro de freguês. Venho aqui de vez em quando, sou praticamente um estranho na casa, daí que os garçons não me dêem muita atenção. Passam esbarrando entre as mesas, como se eu nem estivesse aqui. Feito esses dois aqui ao lado, rapaz e moça, reclamando do patrão que ainda não chegou. Riem alto, atrapalham meu pensamento. Agora, falam de um certo cliente meio viado. Estão nem aí. Será que também falam de mim pelas costas?
Tudo bem. Penso no barato que a pós-modernidade me dá ao bebê-la. Olho pro copo, remexo o líquido… detalhe curioso, a pós-modernidade líquida. Sei lá, lembro daquele velhinho comuna dos livros, como é mesmo? Bauman. Alguma coisa Bauman. Os livros dele não têm sempre qualquer coisa líquida, líquida como adjetivo? Tsc, besteira. Que viagem… tá subindo isso aqui. Rapaz…
Uau. A pós-modernidade invade meus sentidos, aos poucos, ainda não o suficiente para me embriagar. Tô consciente. Mas já sinto o efeito. Meus membros relaxam um pouco. Minha mente embaralha e volta, as luzes giram lá fora, caleidoscópicas; as buzinas dos carros soam como notas musicais sem harmonia; cores contrastam, intensificam-se, misturam-se, gradativamente: me invade uma sensação de liberdade. Viro mais um copo. Ah…
Dá vontade de gritar. Qualquer coisa. Porra, de repente dá uma raiva súbita desse salão, desses garçons tudo arrumadinho, essa organização geométrica, acho tudo de um mau gosto aqui (menos aquela gostosa ali, caramba…). Sei lá, e se rolasse um caos aqui, uma baguncinha que seja? E se eu chutasse as cadeiras agora, puxasse as toalhas, quebrasse uns copos? Ia ser uma farra, puta história depois. Ih, olha lá o dono chegando, aquele careca alemão… pela cara, com certeza montou este lugar com aquela logiquinha burguesa típica de quem quer ficar rico. Agora, esse asseio profilático todo, porra, num bar! Deve ser pra agradar aquele bando de mauricinhos playboys e aquelas menininhas “de família” que gostam mesmo é de, eu sei bem do que elas gostam, aquele bando de…
Chegaram uns caras num SUV gordo, gigante. É o quê, aquilo? Range Rover. Cara, olha só… esses cabelinhos, puta merda. Vidinhas pequeno-burguesas, patéticas. Escravos do capital, seus otários, é isso que vocês são: trabalham igual uma mula prum ricaço e depois vêm aqui, com esses terninhos pra… tsc, foda-se. Não adianta, não sabem, sabem de porra nenhuma, não podem saber. Consumo, a vida é consumir, eles vivem pra isso. Babacas alienados. É tudo errado, tudo errado, sei lá. Merda. É… mas nem é culpa deles, é que… a questão é o sistema… isso… é o sistema que… é foda…
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Última dose. Zerei a garrafa de pós-modernidade. Sobe rápido isso aqui, vou te falar. O barato passa rápido, também. Ah, mas foi bom, eu achei. Levanto me equilibrando, zonzo ainda. Pago a conta, já meio sem graça. Preciso mijar… começa uma dor de cabeça, latejante. O estômago embrulhando. Merda… pra quê vim beber aquele troço? Puta coisa sem sentido… quanta estupidez…