Gilson, um brasileiro

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“Tá com inveja?”

Gilson morria de medo dessa frase. Imagine só, ter inveja. Pecado capital.

De modo que Gilson era generoso. Parabenizava todo mundo: pelo novo emprego, pelo novo cachorro, pela nova promoção. No fundo, acreditava, celebrar a conquista alheia talvez funcionasse como uma cosquinha na barriga da existência, um cafuné no destino: talvez o universo retribuísse a generosidade dele algum dia.

Gilson curtia o post, comentava; era fofo. Não perdia um aniversário nas notificações, parabenizava a viagem do conhecido — que mal lhe respondia de volta. “Feliz por você, brother”. Nada. Se mulher, Gilson comentava com tato e sensibilidade, para evitar grosseria e machismo. Refazia o elogio, editava o comentário uma porção de vezes.

E era incrível, mesmo: parecia que todos ao redor de Gilson se davam bem, tanto que ele chegou a pensar se o bem-querer ofertado ao mundo não causasse um efeito maior, não influísse nas energias invisíveis a beneficiar seu círculo social, se não movesse as engrenagens espirituais do progresso alheio. Quem sabe? Algum bem devia fazer. Mistérios existem.

Um dia, sem mais nem menos, Gilson é demitido. “Tudo bem” — diz à chefe, visivelmente embaraçada — “as coisas estão difíceis, mesmo. Essa pandemia não tá fácil pra ninguém.” Aperta-lhe a mão e agradece, como se fosse promovido, como se recebesse um troféu. Gratidão na perda: Gilson sentia-se especialmente enobrecido por cultivar tal sentimento. “O universo vê tudo; ele está vendo, agora”.

Quando passou pelo corredor, viu que já tinha alguém chegando à sua mesa, colocando coisas, um desconhecido. “Que loucura… eu, gerando emprego? A família dele vai receber uma ótima notícia hoje, posso até imaginar”.

As pessoas viviam pedindo favores a Gilson. Quando recebeu a indenização trabalhista, pagou o cartão de crédito da irmã cujo marido estava desempregado há ano e meio. Como tivesse um carro com caçamba e tempo de sobra, levava pra lá e pra cá bugigangas de todo tipo: máquinas de lavar, sofás, armários desmontados, entulho de reforma. Perdia fins de semana com aquilo e seu carro colecionava arranhões. Mas ele ajudava, sentia-se útil. Custava nada.

Quando foi sacar o FGTS, Gilson traçou um plano. Como soubesse da má vontade dos funcionários na agência do bairro onde morava, dirigiu-se a outra agência, num bairro nobre onde gente remediada frequentava. Geralmente, a equipe lá era mais treinada no atendimento ao público vip, o qual não tolerava grosserias.

Bem, ele foi. Tomou um belo chá de cadeira, pois a agência só tinha dois caixas funcionando e um deles era preferencial, de sorte que não parava de chegar idosos. Saía um, entravam dois; saíam dois, entravam três. “Tudo bem, eu espero. Tenho tempo”, pensava.

De repente, chega ao lado dele uma velhinha e o cutuca. A princípio, toma um susto: “fiz algo errado?” Mas não. A vovó só queria conversar. Solícito, ele ouviu, olhando em seus olhos. Gilson lera tempos atrás o best-seller “O Monge e o Executivo” e lembrou da grande lição do livro: saber ouvir. Ele internalizou o ensinamento, de modo que escutava atentamente tudo que a mulher lhe falava e aguardava por sua vez de responder, quando e se solicitado.

Quando começou a falar — com todo cuidado para não ser invasivo nos problemas familiares da senhorinha — a mulher aponta para o ouvido, sinalizando não escutar direito. “Não ouço muito bem”, disse baixinho, “abaixa só um pouco essa máscara”. Obviamente ele usava o acessório oficial da pandemia. Obedeceu. Só um instante não devia fazer mal. A velhinha também usava a máscara dela, um tanto afrouxada é verdade, a pender e a deixar o nariz para fora.

Enquanto Gilson falava olhando nos olhos da vovó — que ela desviava às vezes para o monitor, pra ver se sua senha não aparecia na tela — de repente ela tem um acesso de tosse, e na primeira tossida a máscara sai completamente de lugar. Gilson a ampara, coitada; depois, ele vê um garrafão d’água postado na coluna ali perto e lhe traz um copo. Ela agradece, secando as lágrimas com um lenço e se recuperando do acesso.

Depois de beber a água, o assunto não prossegue. Chamam a senha da velhinha na tela, que sai sem se despedir. Mas tudo bem, porque Gilson também já tinha sido chamado, enfim. Quando se aproxima do caixa, o funcionário sinaliza que sua máscara estava abaixada, ao queixo. Ele reposiciona e se desculpa. Finalmente, consegue resolver seu assunto no banco, sem dificuldades. O plano dera certo.

Dias depois, Gilson sente uma dor de cabeça intensa. Depois, coriza e tosse seca. “Igual a da senhorinha no banco!” — lembra dela logo na primeira tossida, idêntica. Naquela noite, não dormiu bem. Dores no corpo, mal-estar. O que fazer? O mesmo que em qualquer gripe comum: chá de limão com alho e mel, dipirona pra abaixar a febre, própolis para aliviar a garganta irritada. Enquanto isso, isolamento e rede social para distrair. Curtidas. Likes. Desejos de sorte e sucesso aos amigos. Ficar por dentro das novidades.

Aproveitou e postou que estava com covid-19. Subiu uma foto do teste. ficou esperando as reações: duas curtidas e um comentário “força, man”. Mas ficou nisso. A timeline se atulhara com a repentina morte de um ator famoso. Daí em diante, só se falava naquilo. “Caramba, ele era famoso mesmo. e eu nem conhecia…”

Calculou que por isso não deram muita atenção à sua covid-19. A princípio ele esperava alguma interação maior, já que vivia a pandemia na pele, tal. Se lhe perguntassem, diria que foi a vovó no banco, sem dúvida. Depois, recomendaria cuidados e precauções, relataria sua experiência. Mas ninguém lhe pediu qualquer detalhe.

Dali a duas noites, Gilson tem uma forte crise de falta de ar. Como sua esposa não soubesse dirigir, decidiram ir de Uber ao hospital. Antes, deixaram o filho de oito anos com a sogra, que viera de ônibus.

No pronto-socorro, Gilson foi logo conduzido à UTI e dali colhem os exames todos. Na sequência, é internado às pressas com síndrome respiratória. “Ele vai se recuperar” — diz o enfermeiro à esposa, meio sem olhá-la direito, como se falasse aquilo a todo mundo em modo automático. Gilson é transferido para a ala dos respiradores. Intubado, fica instalado ali até a recuperação.

Recuperação que não ocorria, porém. Gilson não sabia, mas era cardíaco. Sua diabetes também andava nas alturas e ele nunca detectara. Agora sua saturação estava baixíssima. O coração oscilava. A ala estava lotada, aquele estresse, movimentação intensa.

Após seis dias de muita dificuldade, Gilson não resiste e falece. “Complicações da covid-19”, diz a certidão de óbito. Naquela tardinha, ele torna-se o brasileiro vítima da covid número 431.997. Durante a convalescença, ninguém o visitara, ninguém perguntara por ele. Natural. Na pandemia as pessoas evitam mesmo os hospitais.

Dias depois do falecimento repentino, como não aparecesse mais nas redes sociais, Gilson perdeu alguns seguidores: dos 103 adicionados, contava agora 81. O número diminuía a cada dia. Por enquanto, ninguém dava ainda pela sua falta. Parecia que a qualquer momento pipocaria seu like rotineiro, seu elogio com emojis, sua figurinha de bom-dia.

Mas Gilson habitava outro plano, agora. Se visse aquilo com seu smartphone em mãos, diria algo como “tudo bem, é assim mesmo com as redes sociais, quem não interage acaba sumindo.” Sim, certamente. Daí, consolado por si mesmo uma vez mais, Gilson retornaria contente a seu cantinho no lar que o abrigara em definitivo: o seio do universo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

O totalitarismo digital

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O universo digital ainda acabará com a cultura humana. Em poucos anos não haverá mais registro histórico, memória. Não saberemos a estética de uma certa época, quais sabores tinham, que cores gostavam. Diários, hoje, são as redes sociais. Filmes? Dados, códigos binários. Música? Apps, streamings. Leitura? E-books (mas estes nem tanto, o papel ainda resiste; resta uma esperança). Mas é alarmante: em tudo hoje impera o todo-poderoso algoritmo. O que será das coisas, daquilo que se pode pegar com as mãos, coisas que abrem e fecham, que tocamos e guardamos conosco? O que será dos cinco sentidos corporais com esse totalitarismo digital?

Minha geração, a terceira de trás para frente (nasci em 1979), passou por várias transições tecnológicas. Pulamos do puro material físico e analógico para a convergência digital e vimos suas derivações ao longo do tempo, em como estes dois — o físico e o digital — foram se imiscuindo aos poucos, desde o advento da computação e da internet. Como não lembrar do disco de vinil, sucedido pelo CD, depois pelo mp3, agora o streaming…

No início da internet, eu acreditava que o meio digital fosse um complemento, uma extensão do produto físico, mas que este jamais tornaria-se superado — e aliás não foi superado. As companhias globais da internet estão nos apartando do físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos, cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso. Confesso: sinto uma certo vacuidade hoje em dia, talvez uma orfandade na alma, não sei; um desalento interior quando noto que tudo converge a galope para as malditas “nuvens”, para clouds da vida, que ninguém sabe onde fica, embora nelas confiem cegamente, sem questionar. São pura abstração, ilusão; até mesmo as nuvens reais, aquelas do céu, ao menos pode-se ainda vê-las e apontar para elas. As nuvens digitais, porém, nem isso se pode fazer.

E antes tínhamos coisas de verdade, que existiam nalgum lugar. Dizíamos meu disco, meu livro. Num dia, olhávamos para elas, guardávamos, depois pegávamos de volta tempos depois. Ou nos livrávamos delas. Mas, hoje? Gastamos dinheiro virtual com códigos binários, luzinhas numa tela enquanto códigos de programação rodam em segundo plano desde servidores nalgum ponto do planeta. Aposto: todo mundo saberia listar pelo menos três discos que ouviu na infância, talvez os dois CDs preferidos na adolescência. Agora, digam-me lá: qual filme você viu em streaming no início de 2016? De qual série mais gostou em 2015? Um milhão de dólares para quem acertar de cabeça, sem esforço de memória nem consulta ao Google.


As companhias globais da internet nos apartam do mundo físico a fórceps, a contragosto; nos hipnotizam, aliciam-nos cada vez mais. Perdemos uma guerra sem saber que estamos em guerra, estamos no centro de uma disputa sem dar por isso


Entendem meu ponto? Nossa memória cultural se esvai e se esvai. Sem contar o mais grave: fornecemos a robôs invisíveis nossas intimidades, nosso endereço, nossos hábitos pessoais. Eles sabem a que hora vamos dormir, quando acordamos, o que fazemos, o que deixamos de fazer. Acompanham nossos passos, por onde andamos durante o dia.

Falava algo disso com um conhecido no trabalho. Comentávamos a respeito da Netflix, por exemplo. O que é a Netflix, exatamente? À primeira vista, uma plataforma digital de exibição de vídeos: filmes, séries, documentários. Certo? Mais ou menos. Esta é a parte boa. A parte ruim e não contada é que a Netflix não passa de um ladrão voraz e ditatorial de tempo. Do meu e do seu tempo. A companhia Netflix trabalha, e muito, para comer (não encontro verbo mais apropriado), para devorar todo nosso tempo, nossa atenção. Nem o pior dos ditadores do passado jamais pensara em algo assim.

E pensar que nossos avós nos alertavam a respeito da televisão… agora, a tevê é meio dos mais inocentes: não possui algoritmos, mapas faciais, controles de acesso, “stats” plotadas num gráfico.

Tenho pensado muito nisso nos últimos dias. E aos poucos, decidi voltar-me cada vez mais ao bom e velho analógico, ao material físico. Discos, filmes, livros, revistas, jornal… de maneira que deixo essa proposta: voltemos às coisas palpáveis, tridimensionais, materiais. Coisas com cheiro, com cor e textura. Coisas feitas por e para seres humanos. Resistamos, docemente. Geraremos mais empregos, ajudaremos mais gente assim. A transformação da matéria em produto final requer toda uma cadeia produtiva, algo que quase não acontece no meio digital.

Parece bobagem? Talvez, mas pense melhor, com mais calma. As coisas físicas sempre nos serviram. Qual o problema com elas? Nós as usamos quando quisermos, sem assinatura mensal, sem conexão, sem wi-fi. Dispomos delas sempre. Quanto a essas companhias do mundo digital e seus produtos ilusórios numa tela de smartphone, a mercadoria é você, sua própria existência. Pelo menos, é isso o que elas pretendem fazer.

Vale a pena dedicar nossa vida e intimidade a esse totalitarismo digital? Não creio. Acho que ainda podemos dar meia-volta e repensar os caminhos que estamos trilhando. A escolha é toda nossa, por enquanto. Por enquanto: talvez amanhã seja tarde demais.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

A falência da Abril
e as redes sociais

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Sei que é contraditório e irônico postar isto justamente aqui, numa mídia digital, mas a falência da Abril ligou um alerta em minha mente. Na verdade, já vinha pensando nisso há algum tempo: a morte da comunicação impressa, especialmente revistas e jornais.

Constato que a comunicação em papel escapa do horizonte de toda uma geração emergente, quem dirá das próximas. Por exemplo, muitos jovens na casa dos vinte anos (arrisco dizer a maioria) nunca compraram uma revista na vida, exceto sob influência dos pais, na infância.

Mesmo onde trabalho (e trabalho numa mídia impressa!), numa conversa alheia, um “garoto” de 22 anos que ali trabalha disse nunca ter ouvido falar de “um tal de jornal Lance”. Eu, ouvindo à distância, fiz um facepalm mental: o garoto nunca, nunquinha na vida dele pisou numa banca e, se pisou, nunca comprou um jornal, ainda que não necessariamente o Lance.

Eu já comprei o Lance. Não muitos. Mas lembro de um, na derrota do Brasil para a França em 98, por exemplo.

Na verdade, eu vi o Lance nascer, em 1995, com um formato de tablóide europeu e com um projeto gráfico colorido que foi absolutamente revolucionário para a época, quando ainda os jornais eram todos em preto e branco. Para se ter uma idéia, a Folha de S. Paulo tornou-se colorida só no ano seguinte, em 1996.

Mas não falo isso por saudosismo ou nostalgia, embora haja algo disso sim. Meu ponto é este, sem rodeios: as redes sociais estão matando a inteligência, o senso temporal, o registro histórico, etc. etc. etc. Esse negócio de confiar seu registro e de tudo que acontece à sua volta a uma empresa como a do sr. Zuckerberg me parece loucura.

O garoto acima citado falou aquilo com certa naturalidade orgulhosa, como se não saber da existência de um jornal, mesmo trabalhando em outro, o colocasse na roda dos descolados, dos up-to-date de sua geração.

Esquisito esse orgulho da ignorância. Da minha parte, eu já amava publicações impressas mesmo no tempo da tevê, geração da qual faço parte. Sempre gostei de ler, e não apenas coisas muito relevantes, mas as corriqueiras também (aliás, quem diz só ler coisas relevantes não lê nada — como saber o que é relevante sem conhecer o irrelevante? — mas este é outro tópico).


As redes sociais estão matando a inteligência, o senso temporal, o registro histórico, etc.


Bem, por acaso, topei ontem com esse livro que pretendo ler nos próximos dias. Vi uma entrevista do autor em que ele fala coisas interessantes sobre as redes sociais, contra elas. ( https://amzn.to/2LDPVq9 ).

Mas há outra coisa de grave quanto às redes sociais. Sabe o que acontecerá nos próximos dias? Centenas de parlamentares que tomarão posse e mandarão em mim e em você, e farão leis para mim e para você e eles não são nada, absolutamente nada além de populares de rede social. Campeão dos likes e dos hearts. Gente de quem você não compraria um boné pessoalmente, mas que pela persona que construíram habilmente nas redes, ganharam mais que curtidas, ganharam um mandato parlamentar. Cara, isso é sério demais, sinta o peso disso. É muito grave, se pensar a longo prazo. O argumento de que “os que estavam lá já não valiam nada, mesmo” não é válido: cocô de rato e cocô de camelo são ambos cocô, ainda, desculpe. Mesmo que os eleitos provem que são capazes, a forma como eles construíram sua imagem foi falsa, via redes sociais apenas, e este é o ponto aqui. O quê realizaram de concreto que fizesse jus aos votos que obtiveram?

Voltando ao caso da Abril, eu não quero um país em que uma editora — a despeito de todos os seus pecados, que eu bem sei que os têm — feche as portas e ponha milhares de trabalhadores no olho da rua (e atenção: falo de pais de família das gráficas, motoristas, faxineiras, cozinheiras, etc. e não apenas jornalistas chiques & famosos), enquanto gente obscura embora performática de redes sociais ganhem 50 mil por mês, no mínimo, pago do seu e meu bolso, e ainda por cima detenha nas mãos o poder político concreto e efetivo sobre a sociedade. Tudo isso graças a… likes(!!). Pelo amor de Deus, isso é grave.


A gente precisa parar com esse vício de redes sociais, de alguma forma, antes que seja tarde e elas moldem nossa maneira de viver.


Claro que prego no deserto. A indústria de smartphones vai muito bem, obrigado e, na disputa entre material impresso e fotinhas em telinhas OLED ultracoloridas, essa última ganhará de lavada. O sr. Zuckerberg tem muito pouco com que se preocupar.

Contudo, pergunto o seguinte: quem fez mais pela cultura do Brasil, a Abril ou o Facebook? Fácil responder, não? E, sim, uma coisa exclui a outra, aliás já excluiu. A dicotomia é verdadeira.

A gente precisa parar com esse vício de redes sociais, de alguma forma, antes que seja tarde e elas moldem nossa maneira de viver. Estamos pondo grilhões na nossa mente, elegendo feitores sobre nós, sem percebermos.

Talvez continue o assunto. Obrigado pelo seu tempo, eu não mereço tanto. Obrigado, de novo.




Texto 100% Criação Humana / 0% Inteligência Artificial
(Selo criado por Beth Spencer)

Os sem-carisma
e as redes sociais

CARISMA ou você tem ou você não tem, já dizia certa propaganda. Quando se tem carisma, até palavrão vira poesia. É um feitiço misterioso, um charme inexplicável, um solzinho particular o carisma: dele todos querem ficar pertinho, se aquecer, se iluminar; flores em botão abrem-se ante os raios que o carismático emana.

Mas não vou falar dos carismáticos, muita gente já tratou deles. Quero falar com você, pessoa normalzinha, de uma aura meio acinzentada e sem graça; você que não desperta interesse algum. Já era hora de alguém falar com você. Vou identificá-lo como sem-carisma, para facilitar as coisas, ok?

Os sem-carisma sofrem em tempos de rede social. Quando alguém carismático posta algo banal na rede, coisa bobinha, uma foto da obturação no dente por exemplo, ganha logo uma penca de likes, risinhos, comentários fofos e engraçados, solidariedade “ui, Rê, doeu? Tá tudo bem? S2”. Quem vai lá no perfil do carismático vê: 4.990 amigos, 12.955 seguidores (ou muito mais). “Como assim?” pensa o sem-carisma. “Essa daí só posta bobagem!” Fale a verdade, dá uma inveja…

Com frequência, o sem-carisma é justamente aquele que comenta posts de carismáticos. Caixas de comentário são o habitat dos sem graça nenhuma, é preciso dizer. Muitos, almejando um destaquezinho que seja, vivem à sombra dos charmosos, como se a interação virtual os jogasse instantaneamente para o lado dos bacanas. O truque não funciona: então, deprimidos, eles verificam que continuam lá, no cantinho dos desinteressantes, mesmo com aquele comentário tão sublime, tão pertinente… Pôxa, é duro.

Sabe o que acontece, sem-carisma? Você é legal, sim. No fundo, é. Só que algo trava contigo, algo não decola, falta uma coisa astral, entende? De modo que os haters são o efeito colateral de ser sem-carisma, um estado extremo adotado por aqueles que cansaram de tentar ser legal na internet e não conseguiram. Daí, viram a casaca, revoltam-se.

A coisa é séria. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem até cursos de carisma, de charme. Psicólogos, coaches, especialistas auto-proclamados de todo tipo oferecem, por módico valor, a arte do magnetismo pessoal. No fundo, fica implícito que timidez e introversão são uma espécie de doença que deva ser curada. Eles vendem que carisma se aprende. Pessoalmente, duvido.

Deixar a timidez e o estilo reservado é contrariar a natureza. É negar a própria personalidade (e aqui descambo para a auto-ajuda). O mundo parece forçar quem não tem carisma a tê-lo, compulsoriamente. Daí, você finge. E sofre.

Tá, antes que narizes formiguem e olhos marejem, vou ao meu ponto: dá para sobreviver sem carisma nas redes? Claro que dá. Em primeiro lugar, não tente fingir, não force para ser agradável e engraçado, bancar o divertido, algo assim. Sem-carisma quando posa de carismático, ou é ignorado sumariamente ou ganha lá uma aprovaçãozinha assim pequenininha, uma caridade, por pura dó — o que é uma forma de humilhação.

“Seja você mesmo” diz o velho conselho. Não tente imitar ninguém. A essa altura você já entendeu que não tem carisma mesmo, e daí? Você não pode brilhar de outra maneira? Talvez não seja o popular, é verdade, mas se sentirá confortável consigo mesmo quando nem se preocupar mais com isso. Cá entre nós: você quer realmente ser popular? Quer ter puxa-sacos, inimigos, stalkers, haters e coisas do tipo? Receber inboxes de gente esquisita? Olha, viver bem e em paz é muito melhor. Perfil lotado em rede social é vulgar, e pode ser um aborrecimento no fim das contas. Administrar reputação virtual — tem coisa mais chata?

Carisma parece a coisa mais importante do mundo, mas não é. “Também não acho, mas duvido que tudo isso aí acima funcione.” Funciona sim, meu pobre sem-carisma desiludido. Funciona sim. Veja, você mesmo chegou até aqui e leu tudinho, não leu? Então.