Bicho romancista,
filhote romance

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O bicho romancista não é apenas um contador de histórias. Seu ofício não deve ser visto como qualquer coisa menor, como se não passasse de inventar uns quantos causos razoavelmente elaborados ou conversa fiada na forma de livro. O bicho romancista pode ser também um artista do idioma, filósofo, historiador, psicólogo, profeta, (santo não digo). E até mais.

Bicho é modo de dizer, pois ele é estranho à primeira vista. No entanto, pode ser mais gente que a gente. O romancista penetra no tecido da realidade, por entre as tramas, com sensibilidade e argúcia. Ele enxerga a alma humana com olho clínico. Alimenta-se da verdade oculta nas coisas, nas pessoas e situações do mundo, para depois metabolizar tudo de um jeito singular. Feito outro bicho, a águia, ele vê o senso comum desde as altitudes e o recria, o retrabalha.

O romancista é feroz e calmo, veemente e sutil, a um só tempo. Ele articula extremos, ata as pontas, sintetiza complicações, comprime e expande. Abre as percepções como quem abre a janela de um quarto escuro, e nesse simples gesto dissipa as trevas da incompreensão.

O filhote do bicho romancista é o romance. Sem prejuízo dos demais gêneros literários, o romance representa a maturidade da literatura enquanto tal. Por exemplo, muita gente já ouviu o elogio que se faz à natação, “esporte completo, que trabalha todo o corpo”. Pois bem: o romance é gênero completo que trabalha toda a imaginação. Afinal, onde mais se pode descrever tantas faces da existência — faces por vezes caleidoscópicas — , reunidas numas poucas personagens e situações?

As demais artes não são capazes de tal, tampouco se propõem a tal. Pois o romance serve a burocratas, sociólogos, atores, faxineiros, médicos, clérigos; a pobres e a ricos. A toda gente. É nobre criação, da qual o romancista é artífice habilidoso.

Mas, e quanto ao leitor? Descendo ao rés do chão, não vejo com bons olhos quem leia de tudo exceto romances. Tudo bem: pode ser que, para alguns, ainda não tenha ocorrido um encontro feliz com o gênero; haverá tempo e oportunidade se houver disposição. Contudo, refiro-me àqueles que por ignorância desdenham da ficção literária em geral; ou dela façam leituras protocolares, de exceção, para fins de repertório livresco. Agem como se pairassem acima da arte, com suas seriedades comezinhas e estúpidas. Uns filisteus.

Por outro lado, consumir livros de afirmação — a não-ficção propriamente dita, com suas variadas ramificações; voltar-se apenas a teses rígidas e pré-digeridas pelos autores, repletas de conceituações ou análises áridas do cotidiano — , obviamente tem seu valor e utilidade. Não obstante, somente o romance dará ao leitor uma massa maleável e informe a ser moldada por sua própria imaginação. E a imaginação é o dínamo da inteligência.

Quer liberdade maior para o pensamento? Que outro gênero oferece tanto? O romance constrói, amplia e enriquece a visão da vida e das coisas. Depois de lido, a própria não-ficção deriva-se também, ultrapassa as inculcações superficiais, os dogmatismos esterilizantes. Romances educam o ato de ler, treinam a compreensão. Fazem os demais textos ficarem claros, discerníveis. Inclusive os textos ruins, ao denunciá-los como ruins.

Além disso, não vendem certezas. As teses do romance são sutis. Não fazem a cabeça, pelo contrário; por vezes questionam as convicções, como se postassem um espelho diante de nossa vaidade autoindulgente, a nos dizer: “olha como é você, como somos, de que é feita nossa humanidade”. Chegam a confundir-nos, de modo benfazejo; amadurecem-nos, desenvolvem nossa consciência moral e abrem perspectivas, varrendo pré-julgamentos.

Claro: refiro-me ao melhor produto e aos melhores produtores do gênero. O bicho romancista e o filhote romance não se deixam confundir, não admitem impostores. Antes, os desmascaram.

A arte do
romance

ROMANCISTAS não são apenas narradores ou contadores de histórias. São também artistas da língua que penetram por entre as “malhas” da vida e da realidade, com sensibilidade e argúcia, e internalizam em si a verdade das coisas, sem sentenciar, pontificar ou julgar. Sutilmente.

Ser romancista é a plenitude da literatura. Afinal, onde mais, a não ser no romance, se pode descrever múltiplas faces da existência, faces por vezes caleidoscópicas reunidas numa mesma personalidade, a não ser neste gênero literário? A filosofia e a poesia não são capazes de tal, nem se propõem a tal.

Romances dão “material” à filosofia. São nobre arte, e os romancistas, artífices habilidosos e capazes.

Não vejo com bons olhos quem leia de tudo, exceto romances. Ou mesmo faça leituras protocolares do gênero somente para fins de “repertório”. Parece-me sinal de imaturidade intelectual, não apenas questão de gosto.

Consumir livros de “afirmação” com teses rígidas e prontas ou textos “digeridos” do cotidiano tal como crônicas e ensaios, podem e têm lá seu valor. Mas somente o romance constrói e amplia a visão das coisas. Não vende certezas, pelo contrário; por vezes as destrói e as confunde, despertando mil perspectivas ao longo do tempo. (Claro que me refiro ao melhor produto do gênero).

Romances são as leituras primordiais de quem sabe que nada sabe. E são justamente estes os que mais sabem, paradoxalmente.