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Horas depois de tomar a terceira dose da vacina contra a Covid-19 — o booster by Pfizer — sentei-me um pouco no sofá, pois o imunizante causara em mim o que na boa Bahia chama-se leseira. Reação à vacina. Mas tentei passar a leseira de um modo interessante, e então, ao bater os olhos numa velha coleção repousada na estante, intitulada Grandes Mestres da Pintura, puxei o volume 7 que trazia as obras de Diego Velázquez (1599–1660).
Inevitável ver a reprodução dos quadros do pintor espanhol e não sentir um enlevo na alma. Mergulhamos no indecifrável ao ver suas telas, saímos de onde estamos e como que adentramos no quadro, o qual torna-se vida, presença. Cada olhar enigmático captura nossa atenção como um ímã. Cada pessoa, cada cena retratada por Velázquez é como se o artista transportasse o fragmento vivo diante de si num instante longínquo e o trouxesse a nós, hoje. Então, abre-se como que um portal no tempo. Penso, contemplativo: se a arte existe, Deus existe. Velázquez pintava com a mão de Deus.
Fechado o volume, encerra a contemplação. E devagarinho vai-se a leseira by Pfizer.
No dia seguinte, vou ao supermercado. E naqueles corredores, tenho um flashback: vem-me à cabeça uma conversa que tivera em 2008, no corredor do cafezinho da empresa. A Mega-Sena acumulara, e a turma, ao combinar um bolão no escritório, pôs-se a sonhar e a dizer o que fariam se botassem a mão na dinheirama. Pergunta batida, respostas idem: carro, casa, viagem; ajudar os pais; chutar o patrão e trabalhar “pra mim”; arranjar uma gostosa; e companhia limitada.
Daí o zé papo-cabeça aqui não se segura. No meio do parlatório, olho para um colega que divagava bobamente à minha frente e digo: “se eu ganhasse aquela grana, em primeiro lugar aprenderia a ser rico”. Ele me olha meio espantado. “Que diabos esse aí tá falando?”, faz com a cara. Leio seus pensamentos e emendo, “de que adianta ter tanto dinheiro e não saber desfrutar? Mansão, carro, viagem? Ter avião, fazenda com pista de pouso? Depois, escutar breganejo universitário e entornar rabos-de-galo em frente à churrasqueira? Isso não é ser rico. É ser pobre com dinheiro. Rico pede um jeito de ser, um refinamento adequado, uma cultura de acordo.”
À evidente falta de interesse do colega, corto a argumentação. Pena. Sigo por aqui, anos depois, pois continuo com a mesma opinião fresquinha na mente; opinião aliás renascida e vitaminada, sobretudo desde que travei conhecimento com certa figura infeliz deste vigente Brasil do Bozo: o famigerado Véio da Havan.
A este senhor, cujas lojas macaqueiam a Casa Branca do Tio Sam sobre nosso barro vermelho, chamam também Zé Carioca. Algo injusto e impreciso. Primeiro porque, malgrado o paletó-fantasia, Véio da Havan não tem nada de carioca; segundo que nem de longe mostra a simpatia do papagaio boa-vida de Walt Disney. O sujeito está mais para Dr. Silvana, arqui-inimigo do Shazam. Com uma diferença: Dr. Silvana respeitava a ciência até demais, afinal era um cientista maluco. O Véio da Havan, nem um pingo: sonega o conhecimento acumulado pela humanidade até em delicados assuntos de família, como num caso que tristemente soubemos.
Mas o tipo é bilionário e orgulha-se em dizê-lo. E grava uns vídeos em smartphones – hábito deveras aristocrático. Pois num daqueles vídeos, põe-se ele a dizer “eu tenho dinheiro, tenho dinheiro, posso parar de trabalhar quando quiser, e você?”, por aí vai. No contexto, ele se colocava contra o isolamento social no início da pandemia de Covid-19, insinuando que essa história de pobre se isolar da doença é muito luxo. Em seguida, esfrega na cara do brasileiro médio a montanha de dinheiro que possui. Gesto nobre e magnânimo. Algo como Mike Tyson ir a uma creche, reunir uns pimpolhos em volta de si e dizer “ninguém aqui é páreo pra mim”, para depois enrijecer os bíceps e rosnar (Mr. Tyson jamais faria isso, quero crer).
Pois o lamentável senhor pode ter mesmo muito dinheiro, ninguém nega — o que prova que o capitalismo pode ser tudo, menos justo. Porque o Véio obviamente não aprendeu a ser rico conforme defendi na frustrada disputatio da firma, em 2008. Ele teria grana de sobra para degustar, sei lá, um canard au sang no La Tour d’Argent de Paris, por exemplo; ou quem sabe repousar à mesa um legítimo Pata Negra Juan Pedro Domecq; poderia ainda umedecer a goela com um Macallan in Lalique 50 Years, sem sobressaltos. Mas, por favor: consciente do que significam tais mimos, com detida atenção aos detalhes.
Enfim, ele poderia tudo isso e muito mais, não apenas porque “tem dinheiro”, mas porque a bufunfa possibilitaria ampliar horizontes, gozar a vida, admirar-se um pouco do bom e do belo que o mundo tem a oferecer. E quem sabe, com o coração enternecido pela sorte que tem (ninguém chega a bilionário trabalhando, pare com isso), bem, retribuir algo à nossa sociedade, uma nesga que seja. Bancar a Cinemateca Brasileira, por exemplo. Seria o mínimo.
E olha, para tanta experiência aprazível nem precisa bilhão. Uns milhões já são suficientes. Mas o bilionário certamente trocaria a Costa Amalfitana de Gore Vidal pela Disneylândia do Pateta, para comer hot-dog com ketchup e pipoca amanteigada no balde, todo faceiro e pimpão; tanto mais porque não há empregadas a dividir o vôo da United com ele, graças a Paulo Guedes, seu igual.
Mas deixe-me voltar ao livro de Velázquez. Na última página, consta a informação de que as principais obras do pintor ibérico encontram-se no Museu do Prado, na Espanha, perfazendo um total de 53 quadros expostos. Pergunto-me se o cara das estátuas americanas de fibra admiraria a autêntica galeria madrilenha. Duvido muito. “O quê? Museu? 53 quadros? Peraí, você disse 53?” Certamente daria logo um bypass, não sem antes indagar-se, meio apoplético, “pra quê isso? qual a serventia?”, enquanto baba na camiseta verde e amarela.
Ok, meio que pego pesado. Dirão que invejo o Véio. Óbvio que sim: quisera eu ter tanto dinheiro como o havânico, saibam os doutores. Ademais, que resta a nós, aprisionados nesta encarnação de pobre melhorzinho-esforçadinho, um degrauzinho e meio acima da pobreza e a brigar todo mês com o cheque especial; ora, que nos resta exceto menosprezar um pouco os ultra-endinheirados? Sobretudo os filisteus até a medula? Tivesse uma fraçãozinha daquele tutu, eu seria feliz como ele nem imagina.
Claro, claro: não precisa ser bi nem milionário para ir ao Museu do Prado ver Velázquez. Bastaria arranjarmos um Ministro da Fazenda decente, que arrumasse a economia e o câmbio, no plano macro; e no micro, trabalhar, juntar algum e programar a viagem. É, eu sei. Está nos planos. Ocorre que o calvo poderia fazê-lo na hora que quisesse, mas a hipótese muito provavelmente nem lhe ocorre. Em vez disso, o que faz? Come hambúrguer no Madero? Lê as obras completas de Carluxo no Zap? Financia estripulias golpistas a terças-livres et caterva? Quanto desperdício. Pfui.
Enfim, o Véio é daquelas figuras que nos ressecam a inspiração, de modo que é melhor não demorar-se muito nelas. Portanto, encerro este colóquio à guisa de desabafo com uma pérola do filósofo popular e jurado Pedro de Lara, dita a madame Elke Maravilha (referindo-se a Silvio Santos — pioneiro da mesma lavra filistina donde procedem havans e quejandos):
“Tem gente que é tão pobre, mas tão pobre, que a única coisa que tem é dinheiro.”
Ó, sábio homem. Ó, injusto mundo.
Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 5/2/2022

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