Zé Lins ensina
a ironizar

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Ainda leio jornal que suja a mão, no bom e velho papel. Faço isso desde guri, quando meu pai lia o Diario Popular (sem acento no “a”, mesmo) ou a Gazeta Esportiva, ambos de São Paulo, extintos. Pouco mais tarde, na adolescência, minha irmã mais velha encasquetou de ser jornalista e, em busca de referências, muniu-se de periódicos mais chiques: a Folha e o Estadão. Lembro especialmente das edições dominicais desses jornais, que pesavam por volta de um quilo cada exemplar. Era leitura para a semana toda. A partir de então, aprendi a ler colunistas, não sei porquê. Não parei mais. Eu devia ter o quê, uns onze, doze anos.

Leio colunistas hoje em dia: malgrado exceções muito honrosas, na maioria remanescentes do cenozóico, há uma entressafra no colunismo de dar dó. Dó do leitor. Sobe-me uns pudores por dizer o que direi, contudo é preciso: tem gente a assinar colunas que eu sinceramente não sei bem o que faz ali, para além do eventual ganho monetário. Não falo de concordância ou discordância de ideias: leio com frequência gente de quem discordo, desde que maneje bem a língua de Camões; aliás, ganham-me assim. Mas da tal entressafra, a imagino caída de paraquedas, encaixadas no veículo de imprensa por coincidências incríveis ou espertezas inimagináveis. Não sei bem.

Recentemente, dois desses privilegiados queixaram-se no Twitter de que fizeram colunas irônicas e foram mal interpretados. “Onde está a compreensão textual?”, pareciam dizer, expoentes da clareza e do bom estilo que são. Aham. A julgar pelas réplicas de leitores nervosinhos, diziam, o pessoal não entende uma simples ironia. Será? — pensei com meus botões. Porque, sendo ambos produtos da entressafra, eles não são lá muito hábeis na arte de ironizar. A figura de linguagem é coisa fina, reservada a mestres. Quero dizer: souberam eles trabalhar o recurso para que o pobre leitor entendesse, de bate-pronto? Porque, suspeito, o problema talvez fosse outro. Talvez fossem maus textos, aqueles. Eis a dura verdade.

Sustento a tese de que figuras de linguagem bem aplicadas, a ironia em especial, são captadas de imediato pelo leitor médio. Por avançados, nem se fala. Digo captados no efeito, não na definição semântica. Também quereria explicar que ironia não é sarcasmo — que é exagero carregado e amargo; nem galhofa, que é o atropelo da sutileza. Entretanto, não me dou a didatismos. Não sou professor de estilo, nem me arvoro a tal.

Para tirar a limpo, replico abaixo um texto do escritor José Lins do Rego, a que tive acesso recentemente. Não apontarei ironias: veja por si a gentil leitora, o gentil leitor, como o autor de Menino de Engenho, Fogo Morto, Riacho Doce e grande elenco maneja o idioma. E aproveite para deleitar-se com a verve do mestre, assaz melhor que a desta irrelevância, e elemento faltante à nova geração do colunismo. Volto em seguida:

Carta a Escorel

“Recebi, meu caro crítico, a sua carta onde volta a tratar de clássicos e românticos. É pena que eu não disponha de espaço para transcrevê-la, pois se trata de missiva muito bem escrita, embora não tanto bem pensada.

Em princípio não afirmei que as suas preocupações anti-românticas fossem caminho em rota batida para o reacionarismo político. Temi, somente. E temor de quem já vira outras grandes vocações como a sua tomarem por estradas perigosas. Sei de sua honestidade intelectual e me alegro em sentir em mocidade tão vibrante, e generosa, desejo de debater e, sobretudo, de compreender.

Agora, meu caro Escorel, vou lhe ser franco, muito franco: o seu horror ao romantismo, isto de querer colocar a questão entre liberdade e licença, isto de falar de anarquia, tudo isto não me agrada. Os déspotas sempre que se depararam com o problema fundamental da liberdade vinham logo com esta palavra de licença, para confundir e meter medo. Para todo aquele que se batia pela liberdade, o déspota tinha a chave: “estes que gritam pela liberdade só desejam a licença para destruir a ordem”. Confesso-lhe que não gostei de ver a sua mocidade com palavras de raposas sabidíssimas.

Outra coisa também, com que não me conformo, em sua carta, é querer você atribuir ao romantismo os crimes do nazismo. E querer botar em cima de Wagner e de Nietzsche as culpas desta guerra. Por que confundir o crime com o romantismo? O que existe no nazismo não é uma exasperação romântica como você diz, o que existe ali é somente fúria assassina. E fúria assassina ordenada, conduzida com o maior rigor, dentro de normas, ao compasso de marchas de gansos, tudo elaborado com a mais requintada gramática latina. Hitler é filho germânico de César, criação política de Roma. Wagner e os duendes da floresta negra são somente cenário para o sonho de mais um criador do império mundial. Mas isto é outro conto, como diria o inglês.

Cita você André Gide, fala de disciplina clássica como de conduta essencial à criação literária. Está tudo muito certo. Mas Gide fala para literaturas de maturidade, e nós no Brasil, meu caro Escorel, andamos em perigosa adolescência. O que é remédio para quem já deu um Montaigne não será dieta para quem carece de terra, de sol, de substâncias outras que organismos saturados repelem. Estamos nós brasileiros em tempo de muito precisar de viver, à grande. Para o homem que tem rios para atravessar, árvores para derrubar, terras virgens para lavrar, não se vai obrigar a tomar professor de ginástica sueca. A ginástica sueca fica para Gide, que cultiva rosas.

Em todo caso eu lhe diria, caro Escorel, é preciso não temer românticos. Fala o grande Valéry, tão da ordem clássica, que “toul classicisme suppose un romantisme antérieur”. E este mestre chega a estabelecer um quadro onde o romantismo aparece como o espírito pioneiro, a força que desbrava, a energia que conquista. E que, para completar esta obra, viria o clássico como a polícia de costumes, como a lei que impõe cartas de posturas, etc.

Sucede, meu caro Escorel, que nós no Brasil ainda estamos em plena selva. Ainda há muito trabalho para bandeirantes, para desbravadores, para gente dura e rude. Por isto, Escorel, eu ainda prefiro escutar os Sarmiento, os Euclides da Cunha, os Hernández, os Castro Alves. Estes sabem os segredos da mata, os perigos dos bichos, as asperezas da terra. E Gide, com todo o seu gênio de jardineiro, e Maurras, com toda a sua sabedoria da antigüidade, não saberiam nos conduzir na “bandeira”. É tudo quanto lhe diz o seu admirador.”¹

E então, ironias captadas? Se sim, minha tese há de estar certa: o bom leitor entende o bom texto; o mau escritor reclama do leitor. Possível objeção: “mas há gente que não entende mesmo, caspita! Você não sabe do analfabetismo funcional?” Sim, decerto. Mas ninguém que escreva profissionalmente o faz para incapazes de entender. Daí o problema dos moçoilos queixosos ser outro, com licença: falta muito Zé Lins e companhia limitada na cuca.

Portanto, pessoal: treino e aprendizado. C’est fini. Sem caô.


¹ REGO, José Lins do. Dias Idos e Vividos (Antologia). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981. pp. 113–114.


Originalmente publicado na newsletter Prosaica em 13/2/2022



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(Selo criado por Beth Spencer)

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